terça-feira, 17 de março de 2015

BEATRIZ HIERRO LOPES

Da geração que começou a mostrar-se através da revista Criatura (n.º 1, Fevereiro de 2008), Beatriz Hierro Lopes (n. 1985) tem vindo a destacar-se pela prática não muito frequente entre nós do poema em prosa. Dois livros consolidam essa tendência: É Quase Noite (Averno, Maio de 2013) e [espartilho] (Debout Sur l’Oeuf, Janeiro de 2015). São livros com estruturas muito semelhantes, constituídos por dois conjuntos de poemas em número quase igual. No livro mais recente, os conjuntos chamam-se partes. Já no primeiro volume, cada conjunto recebeu um título que de algum modo os autonomiza: Ossos e Olhos. Mas na realidade parece haver uma continuidade entre eles que torna as divisões acessórias, sendo mais relevante o tom consistente da escrita e a persistência de temáticas, regiões de interesse, obsessões lexicais que oferecem à leitura uma sensação de coerência tanto no estilo como em algo porventura menos superficial, isto é, o ideário imagético e até filosófico que subjaz à escrita. 
Falamos, portanto, de uma prosa personalizada que teve em É Quase Noite um excelente cartão de visita. Nos trinta poemas desse livro, repartidos em partes iguais pelos dois conjuntos, encontramos algo que não é muito frequente: a capacidade de concentrar em poemas principalmente narrativos elementos existenciais que extravasam o domínio exclusivo da experiência, num diálogo intenso entre corpo e sombra que a imagem estendida ao longo de contracapa e capa tão bem ilustra. Parece-me errado tentar circunscrever os poemas de Beatriz Hierro Lopes a um biografismo preenchido por memórias familiares, experiências mais ou menos ambíguas de lugares, contactos esporádicos com objectos de família e ambientes evocadores de uma genealogia omnipresente, até porque esse biografismo joga-se de um modo muito particular no tabuleiro de questões ontológicas onde à omnipresença se opõe uma radical ausência, onde à partilha se opõe a solidão, onde o contacto físico se perde nos interstícios da reconstituição histórica através de memórias difusas e incertas. Mesmo num poema como Biografia, o aspecto declarativo da reconstituição biográfica, com invocações das raízes familiares, esvaece no uso da conjugação condicional: «Dessem-me mais tempo e teria construído a perfeição» (p. 21).
Este é, aliás, um dos aspectos mais marcantes desta poesia. Já o remate do primeiro poema o havia anunciado: «E eu usaria um colar de ossos de finas asas, onde se gravassem os poemas de que mais gosto, se achasse que isso serviria para mudar a minha sorte de velório» (p. 10). Logo a seguir: «Abraçá-las-ia a todas se, assim, encontrasse mais silêncio do que o dos gatos que nelas se escondem» (p. 11). Ou ainda: «pudesse eu, seria judia» (p. 25). O mesmo tipo de artifício iremos reencontrar no livro publicado pela DSO, nomeadamente no poema [salvação]: «Dessem-me amoras, mirtilos e framboesas e, com todas elas esmagadas nas minhas mãos, tingiria as paredes do quarto com o corpo» (p. 44). Ora, esta recorrência à conjugação condicional reforça no texto a preponderância do que ficou por acontecer, do que não chegou a verificar-se por falta de condições. Fosse outro o mundo, seria outra esta poesia. Fosse outra a história, seria outro o texto. Digamos que sobre estas condições pesam tanto a ausência como os sonhos impossíveis que Beatriz Hierro Lopes não herdou da mãe (Cf. Os Sonhos Possíveis), pesa, sobretudo, a raiz que, se não determina, pelo menos condiciona fortemente o curso das águas. 
Os pássaros mortos evocados no poema inicial de É Quase Noite, na sua relação metafórica e metonímica com a poesia e com a liberdade, estabelecem uma ambiguidade que resgata estas prosas do biografismo e do confessionalismo para um campo de encenações muito mais complexas. Página 9: «Desconfio dos pássaros por só os encontrar mortos» (p. 9). Página 46: «Gatos e cães não são de confiança. Só os pássaros». No poema [antecomeço], do volume intitulado [espartilho]: «Não acredito em cães» (p. 10). Que pensar destas relações de confiança e desconfiança com o reino animal? Desde logo, uma clara inquietação quanto aos sujeitos de confiança. O reino doméstico é, claramente, o mais desacreditado. Mas, mais que isso, vislumbramos aqui o indício de uma construção sobre a realidade que faz do poema [palco] um dos mais inadvertidamente confessionais que a autora gerou até à data: «A minha boca é o palco. (…) Sou teatro. Corpo cenário, tão fácil que sirvo a qualquer homem e mulher que se conforte na minha voz» (p. 26). A assunção da artificialidade, acompanhada do enovelado biográfico, eleva estes poemas a um nível de complexidade que mina toda e qualquer interpretação literal. 
À pergunta quem sou subjacente no primeiro livro, sobrepõe-se no segundo a dúvida sobre o que se é. E à pergunta o que sou oferece-nos a autora várias respostas, nenhuma delas passível de interpretações literais: «Sou só rapariga, de pernas estendidas, pés cruzados, buscando a prova definitiva de que é nas paredes que se guardam os medos» (p. 12), «Sou estéril de silêncios» (p. 17), «Sou teatro» (p. 26), «Sou, sem dúvida, a mais promissora montra que conheço, e nem por isso se incendeiam os cabelos para testar o meu elevado perigo de combustão» (p. 33), «Sou vadia e o mesmo é dizer que nasci do fundo do mar onde naufrágios sepultam o progresso de outras vontades» (p. 39). Porventura menos narrativo do que o anterior, [espartilho] é uma intensa especulação ontológica onde a dúvida surge paradoxalmente formulada em tom declarativo. Isto assim é por nos ser dado a entender que as definições partem de um campo onde a realidade surge configurada pela escrita, ela própria um espartilho que a linguagem poética tanto pode apertar como desapertar. Com um discurso centrado no eu, o texto abre caminho para a alteridade. A identidade feminina implícita, desde logo, na escolha do título é agora recolocada no centro do corpo. Já não estamos, como no livro anterior, tão acorrentados à raiz familiar como estamos ao próprio corpo, filtro de todas as experiências, dimensão derradeira do ser aberto ao mundo. 
A linguagem utilizada herda da fenomenologia a capacidade de pensar a interioridade na sua relação com o mundo exterior, sendo especialmente poéticos os momentos de (con)fusão em que o corpo se metamorfoseia com o espaço circundante: «Tenho paredes frias no interior do peito e uma mão que evita tocá-las» (p. 24). Surgem, por vezes, sinais de uma sexualidade espartilhada — «O sexo e a falta que nele há de sexo» (p. 22) —, imagens de uma violência recatada que colocam a morte no centro da vida e a ausência e o abandono no centro da existência: «Para quê espelhos, se o teu relógio sem ponteiros de mostrador estilhaçado te mapeia a trágica encruzilhada das veias?» (p. 36). 
Mas na segunda parte do livro o que mais sobressai é a irrupção da água enquanto elemento fulcral. Ora, a água está presente no imaginário universal como fonte de vida, o ser humano é essencialmente água, o corpo humano é essencialmente água, é o berço onde o ser germina. Nestes poemas de Beatriz Hierro Lopes a água é algo mais, é também, por assim dizer, o leito dos náufragos. E é onde o corpo jovem mergulha para, lá permanecendo, se parecer com a figura engelhada da morte. A água é o tempo a passar pelo corpo, enrugando-o, encolhendo-o, iludindo-o quando nela se vê o rosto espelhado para logo o afogar. O poema [corpo] (p. 41) surge, neste contexto, como outro momento bastante revelador desta poesia cujo maior mérito é estar dentro de si própria e afirmar-se, coerentemente, mais pela busca de sentido do que pela imposição do mesmo: «Deixado entre os lençóis, o meu corpo, para além do nome, é o de um criminoso que encontra na condenação espaço suficiente para se pensar» (p. 41). 

5 comentários:

Anónimo disse...

Que perda de tempo esta análise sobre estrutura interna e externa de pretensa poesia. A análise estilística eleva este texto, mas ele é pesado, confuso, autobiográfico, com tentativas de imagens que mais parecem metáforas a rachar. Mas a História da Literatura Portuguesa conta com um Dantas e um António Feliciano de Castilho. Nada de novo. Especulação ontológica de umbigo? Muito me surpreende perderes tempo desta forma.
Interessante seria questionar por que motivo se escreve um texto para meninas espartilhadas, dando lições, quando parece, ela mesma, sofrer de falta de ar nas frases narrativas onde pouca reflexão se vislumbra.
Peço desculpa, isto não é poesia.
Beatriz Ziero Lopes, adequar-se-ia melhor.

Beatriz Hierro Lopes disse...

Caríssimo Anónimo,
Lamento profundamente que não tenha saído do anonimato, pois gosto de dar nomes reais as pessoas a quem me dirijo, neste caso para lhe agradecer e, se me permite tal ousadia, felicitá-lo: Há muito que digo que não escrevo poesia. Quanto à qualidade da escrita, aceito muitíssimo bem o seu juízo negativo. Repare: eu mesma, pela pequena amostra que tenho sua, não gosto do que escreve. E acho que esse «toque final» de parodiar com o meu apelido de uma fraca imaginação. Não gosto de pessoas com fraca imaginação. Até porque se fosse para parodiar com algum nível deveria ao menos ter-se debruçado sobre o meu nome completo: esse sim, digno de muitos e curiosos trocadilhos.
Receba um abraço desta sua atentíssima leitora.

Anónimo disse...


Cara ESCRITORA,

Que o meu anonimato não a incomode tanto. Sou leitor, mas não um qualquer. Desde que a ESCRITORA se lembrou de escrever sobre o "sofá estufado" do seu avô, entre outras coisas, vi o seu estofo... O Henrique anda aqui a promover gente que nem escrever sabe. Vá para o facebook cantar o "Coro das Velhas" em busca de "likes" e a mostrar-se em auto-retratos. Fume, beba e esqueça isto, o resto é nada! Você é nada, eu nada sou.

Despeço-me com amizade,

Anónimo

Beatriz Hierro Lopes disse...

Caríssimo leitor [que-não-é-um-leitor-qualquer],

Desculpe-me a demora na resposta, contudo, não havendo muito mais a acrescentar, permita-me que dê o meu parco e derradeiro contributo nesta troca de galhardetes. Quando escreveu: «Beatriz Ziero Lopes, adequar-se-ia melhor», creio que pretendia parodiar como o meu apelido «Hierro» tomando-o por «Ziero», quiçá numa tentativa de me chamar, como diriam os espanhóis: un cero a la izquierda; porém, devo congratulá-lo: ao considerar-me como tal, o meu caro leitor não só se revelou fraco de ideias como, ainda assim, pouco conhecedor da língua castelhana. Zero, caríssimo, é Cero. Nunca o seu «ziero» esse sim que revelador do seu comportamento «bajo cero» ou se preferir, na língua que também me é igualmente materna: «abaixo de zero».

Assim me despeço de si, leitor-que-não-é-um-leitor-qualquer mas, seguramente, um, muito abaixo de zero.

Beatriz Hierro Lopes

P.s: Quanto ao «Fume, beba e esqueça isto, o resto é nada! Você é nada eu nada sou». Fale por si. Aprecio bastante história e, ciente desta, jamais direi de mim mesma que nada sou ou que você nada é. Quanto aos meus cigarrinhos - sagradíssimos - tenha a gentileza de os deixar em paz que à literatura pouco interessam.

Anónimo disse...


Cara ESCRITORA,

Continue a escrever. Fui lê-la, não se chateie, são bagatelas, não pretendo dar-lhe mais atenção. Interessei-me pela sua escrita, inicialmente, mas os seus textos carecem de revisão, veja lá onde está o erro:

«Uma espécie de reumatismo sagrado que lhe advira da sua natureza miraculosa e do qual sofria silenciosamente.»

Um abraço.

Já deixei de ser o anónimo-abaixo-de-zero, sou o
Nélio Parra Mendes
ao seu dispor.