domingo, 22 de março de 2015

canção para uma andorinha escoteira

   Esta canção é para ti, andorinha escoteira, que vieste inesperadamente pousar no peitoril molhado da janela. Para ti, friorenta e assustada, que és o anúncio precoce da Primavera escondida sob as dobras espessas da chuva. Canto o temporal nocturno que te revelou aos meus olhos, solitária e esquiva, enquanto te ofereço o coração florido de estranhas esperanças.
   No líquido negrume, quase senti a tua fome de calor e abrigo. Só tenho para dar-te as mãos em concha e a certeza de compreender o apelo misterioso que te trouxe de terras soalheiras à cidade vestida de silêncio e de bruma. Não vieste enganada, como diriam os práticos que nada sabem das coisas, como tu, aladas e inquietas; vieste porque, talvez, um menino doente esperasse por ti para morrer tranquilo. Ou uma rosa temporã fiasse do teu regresso alacre a ordem soberana para desabrochar em cor. Vieste, andorinha, talvez porque um poeta olhava tristemente a lonjura da noite e aguardava a palavra, secreta e inviolável, inscrita na elegância do teu voo.
   Que importam os barómetros, relógios, calendários?
   Agradeço-te por mim, pelo menino, pela rosa temporâ desabrochada. Requeriam-te e vieste: por isso te agradeço, por isso celebro, cantando, a tua vinda inesperada.
   Bem-vinda sejas, andorinha! Bem-vinda sejas! Pelo menino e pela rosa, pela cidade e por mim, ergo no ar esta canção que é para ti - para ti, friorenta e inquieta, nesga de céu estrelado entre nuvens de chumbo e temporal.


Daniel Filipe, in Discurso sobre a cidade - crónicas, Editorial Presença, colecção forma, n.º 8, Setembro de 1977, pp. 50-51.