sexta-feira, 20 de março de 2015

MARÇO


As consequências de muitos acontecimentos e o ressaibo
da canção que evitámos trautear, os becos que ladeámos
e podia ser lá, as horas dobradas que se enroscaram
na insónia até descobrirmos, em desespero,
que fumámos o último cigarro, vão deflagrar em Março,
quando as manhãs se tornarem quentes, uma razia
de maravilhas tão inesperadas, que a precessão poderá
azedar-nos a alma. Esperem para ver — se dois transeuntes de repente,
se contorcerem numa esquina, com as têmporas a escaldar
e pombos treparem pelo céu acima até queimarem
as asas, mesmo que tenham muito frio é dos corações
empedernidos, pois mintam os vossos calendários
o que mentirem, Março chegou. Na cidade,
condenada à alucinação dos ácidos, talvez simule
uma esperança ténue. Um cão correu-a de uma
ponta à outra, temendo começar a ganir. Espíritos
mais inquietos regressaram fascinados
pela irrealidade da luz, pela sedução do afastamento
e apenas por ser demais. Antes que caiam
nas valetas é certo que todos os acontecimentos
não vão ter consequências, que todos os estados mórbidos
são apenas um tendão que se finca no osso, o tédio até
dará vontade de rir tão evidente, descobre-se a paz
de odiar os outros e Março chegou. Os poentes são tão doces,
que se desejaria viver como se não acabassem e por uma vez,
em espanto tal submersa, que haveremos de preferir supor
que esquecemos, escrevêmo-los em cartas para um tenente francês.

José Alberto Oliveira (n. 1952), in O Que Vai Acontecer? (1997). Poeta tardio, estreou-se em livro com  Por Alguns Dias (1992). Antes, havia sido revelado no Anuário de Poesia (1984) da editora Assírio & Alvim e no volume colectivo O Roubo da Fala (1982) - com Manuel Afonso Costa e António Paisana. «É interessante confrontar os poemas de José Alberto Oliveira com os dos poetas revelados nos anos 70 e 80 (gerações afins da sua). O exercício permite algumas conclusões como, por exemplo, a de que a sua escrita, vinculada quase sempre ao leitmotiv do regresso à narratividade (e ao fôlego expressionista, pese embora, mesmo entre poemas de uma sequência, a acentuada variação da intensidade do seu registo), nem por isso se afasta do apuro formalista que era timbre dos sixties» (Eduardo Pitta, in Colóquio/Letras). «Uma voz para quem falar é também esconjurar uma dor, um receio, certa nostalgia e que se serve da ironia como espelho do humano, onde se reflectem debilidades e certezas» (Carlos Bessa, in Expresso).

7 comentários:

manuel a. domingos disse...

poeta

hmbf disse...

Quem? Eu? O Eduardo Pitta? O Carlos Bessa?

bea disse...

eu gostei. Mas não sei criticar. Tão pouco sei se concordo com as críticas, ainda desconheço o autor. e os críticos.

manuel a. domingos disse...

Eduardo Pitta é. Carlos Bessa também. José Alberto Oliveira, de certeza.

Jorge Melícias disse...

ele, não ele-ele, ele, o bem intencionado, simplório e cândido ele.

hmbf disse...

Então e eu, Manuel?

manuel a. domingos disse...

tu também.

mas isso já tu o sabes: já te disse olhos nos olhos, candidamente e de forma simples e sem segundas intenções, isto é, "bem intencionadamente", num pôr do sol qualquer, com as nossas mãos, entrelaçadas, à volta de copos de vinho verde fresco.