quarta-feira, 11 de março de 2015

MULHER ÁRVORE

 
O quintal da casa dos meus pais é acolhedor. Tem um limoeiro carregado de limões com aromas inebriantes, tem uma laranjeira proveitosa com laranjas tão doces e suculentas que parecem impossíveis. Passei por lá há dias e enchi um saco com limões e laranjas, sentei-me a olhar para as roseiras brancas, para as hortênsias, para a magnólia. E enquanto refrescava o corpo com a acidez da limonada, sentei-me a contemplar a vida que floresce na Rua de Santa Bárbara. Num bairro outrora de mineiros, onde o sol nasce para todos ainda que nem todos colham nele o mesmo proveito.
 
 
Agradeço cada um dos teus ramos e cada folha que neles desabrocha e resiste. Por ti o vento passe com leveza, que à tua sombra descansem os filhos desprotegidos. E que neles possas encontrar alento. Se o teu fruto é a morte, de tal morte vidas brotem. Esperança é palavra vã neste quintal onde rego o corpo com limonadas, onde me sento a observar o espertar da Primavera. Do meu testemunho nenhum pólen chegará ao quintal onde te encontras, mas não sou indiferente à tua passagem. Também de existires o langor dos meus braços se envergonha.
 
 
Mas olho a planta desgrenhada de branco contra o fundo de um céu limpo e luminoso, sobre ela cabos eléctricos traçam a página com absoluta inoperância. Os carros estacionados são obsoletos, o gradeamento é uma afronta indesculpável. Plantas destas deviam crescer no deserto, não é juso que medrem rodeadas de invejas mesquinhas. Deviam inspirar o mundo para que na alvura das suas folhas pudessem os homens vislumbrar dias límpidos. Na sombra delas ninguém descansa, a não ser os olhos estupidamente melancólicos do que em cada um de nós há de poesia.  
 
 
 
Esta planta é uma mulher, os seus poemas são escritos com sangue nos camuflados inconfortáveis. Erguem-se bandeiras sobre a ruína, mais um centímetro de terra estéril conquistada para que nela possam talvez ser plantadas outras guerras. O que distingue aquele verde simbólico, pano esvoaçante, da cabeleira branca que perece no quintal dos meus pais? Tudo é efémero, tudo é transitório. E no trânsito em que tudo se move as estações demarcam a rotina. Tanto a mulher como a árvore lutam pelos seus frutos, tanto uma como outra cumprem o seu destino no regaço das estações. Liberdade e sobrevivência não cabem em tão débeis cogitações. Palavras que só de pronunciá-las devíamos sentir vergonha.