Faz agora 100 anos que Virginia e
Leonard Woolf tiveram a feliz ideia de fundar uma editora. Em Fevereiro de 1915
informaram-se sobre o custo e funcionamento das prensas, a 23 de Março de 1917
descobriram na Farrington Street uma pequena prensa manual, com todos os
acessórios, ao preço de 20 libras. Assim nasceu, na sala de estar do famoso
casal, a Hogarth Press. A primeira obra foi uma brochura com um conto de
Leonard Woolf e outro de Virginia Woolf, «impressa num papel de tela colorido
com quatro gravuras em madeira de Dora Carrington». A publicação destes
opúsculos estava valorizada pelas horas dispendidas na composição, na
impressão, na encadernação, no tratamento do papel. O relativo sucesso do
“negócio” permitiu-lhes investir numa prensa mais sofisticada, a conhecida
Minerva. Em 1927 editaram quarenta publicações. Werner Waldmann relata o
crescimento nestes termos: «Quanto mais profissional se ia tornando o negócio,
menos os dois editores podiam dedicar-se a todos os detalhes, sobretudo aos artesanais.
Mas até 1932 sacrificaram ambos muito tempo com actividades triviais. Estas
abrangiam desde a composição, ao prelo, encadernação e mesmo administração:
tinham que empacotar e despachar, tratar da correspondência e fazer contas.
Também não se escusavam a limpar a tinta dos cilindros da máquina ou a
organizar, de vez em quando, o caótico armazém». E acrescenta: «fazer nascer a
língua, manualmente, letra a letra, atraía, por exemplo, cada vez mais
Virginia». Sublinhemos as horas sacrificadas, roubadas à escrita dos próprios
livros e a actividades porventura mais lúdicas, sublinhemos a paixão do labor
artesanal que permitia fazer nascer a língua como quem se dedica a um parto.
Não brincavam em serviço. Publicaram traduções de autores russos, descobriram
T. S. Eliot. Katherine Mansfield, Rilke e Italo Svevo, Gertrude Stein e H. G.
Wells, entre tantos outros, constavam no catálogo. Nem terem recusado Sartre,
Joyce, Auden ou Saul Bellow lhes manchou o currículo. Essas obras têm hoje um
valor inestimável, o qual não se esgota nos autores publicados. Ele reside,
sobretudo, na forma como os livros eram feitos. Ora, num tempo em que o livro
se tornou objecto de massas e as editoras se desenvolvem quase exclusivamente
na base de critérios comerciais, num tempo em que a produção massificada da
obra lhe extrai uma certa exclusividade, sepultando-a na vala comum da
banalidade, as Edições 50kg de Rui Azevedo Ribeiro são um gesto de resistência,
quiçá romântico, que não deve passar despercebido. A recente publicação de
Púsias (Fevereiro de 2015), colecção de poemas saídos da pena de Vítor Silva Tavares, torna ainda
mais fascinante tal actividade, na medida em que nos coloca perante um objecto declaradamente
raro. Na realidade, este folheto dado agora à estampa tem o duplo mérito de
insistir no livro também enquanto objecto de colecção e homenagear (em vida) um
dos mais marcantes editores que Portugal jamais conheceu. Quem esteja
familiarizado com o trabalho editorial de Vítor Silva Tavares nas edições
&etc (ou no &etc), não se espantará com a verve do trovador. Não é a
primeira vez que o editor se deixa publicar enquanto autor, sendo porém de
notar que em muitos textos de badana ou breves apresentações distribuídas por
publicações diversas a qualidade da escrita foi sempre deixando o rabo de fora.
A belíssima capa de Luís Henriques anuncia o tom jocoso que atravessa estas
Púsias. Sarcástico quanto baste, sátiro devedor dos altos signatários da
colecção contramargem (de Guerra Junqueiro a António Lobo de Carvalho, de
Luciano de Samósata a Camillo Castello Branco, de Charles Fourier a Blaise
Cendrars), Silva Tavares restaura e preserva uma herança pícara trespassada por
inquietações modernistas com rima tão cáustica quão espirituosa:
Adeus pátria mal amada,
parto pra dentro de mim.
Tu pátria não dás por nada
e eu assim como assim
ainda caibo — e confio
não ficar pior a sós.
Quanto aos egrégios avós
vão prá puta que os pariu
já agora acompanhados
dos seus netos do futuro.
Cá por mim, pelo seguro,
sequer feitos ilustrados
para semente. Chega
de imposto sucessório:
tu pátria não queres casório
e eu dou-te em troca uma nega.
De candeias às avessas,
cada macaco em seu galho,
ó pátria nem peço meças,
vamos ambos pró galheiro.
Para que algo fique de pé
nesta triste conjuntura
sai esta rima quinté
merece moldura.
Um certo revivalismo dá cor a este
extraordinário volume a preto e branco, cores matriciais de uma pátria
embalada no berço da nostalgia. Suspende-se o tempo sem preocupações com
o futuro que a des-ilusão do passado recusa alimentar. A dúvida que sempre
persiste é: pode a desistência ser um acto de resistência? Falamos de púsias, não
de poesias. Falamos de um Pessoa que mais do que crachá, iconografia
mercantilizada de um país ignorante dos seus poetas, apanha beatas do chão. Ainda
sobre a Hogarth Press, sabemos que se transformou numa «das mais renomadas
editoras do cenário literário britânico, famosa pelo seu interesse
vanguardista, pelas obras líricas, a sua coragem em publicar autores desconhecidos».
Enfim, foi em Inglaterra. Foi noutros tempos. Por cá vamos indo.
Sem comentários:
Enviar um comentário