quarta-feira, 18 de março de 2015

PARA QUÊ?


Para quê todo este pranto que deixas cair
sobre os meus lenços de cambraia?
De onde vens?

Do reino do Senhor,
dos jardins fechados na bruma,
onde não rasgamos as nuvens com os arados da
nossa dor.

Por quem dobram os sinos nos templos desta
vida,
entoando a sua música de pesado timbre que
ecoa na alma,

porquê esta chuva que bate nos vidros,
nas janelas de uma cidade que não posso ver,
que não quero lembrar,

porquê o ofício de quem implora às tardes que
não se afastem,

para quê os sonhos que sonhámos em camas
desfeitas onde deixámos à deriva,
sem leme, sem âncora,
o corpo que não tem fulgor,
e nos viram partir depois,
preparados para a ausência e para a morte,

para quê estes gladíolos sobre a mesa onde
escrevemos todas as palavras dos condenados,
todas as formas de pedir perdão,
de dizer adeus,

para quê um último pensamento de
madrugadas frias,

de deslumbrantes cristais,
de estradas que sobrem para a exaltação dos
astros,

para quê esta canção de cinzas que alguém
atirou ao mar,
com o nome dos amigos por dentro,
com o seu lamento que nos traz o vento,

para quê o verso que fulmina o coração com a
febre dos seus raios,
dos seus relâmpagos mortais,
com o tumulto das terríveis paisagens do
ar,

para quê este ar que respiramos ao abrir as
portas dos salões de fumo e jasmim,

para quê o incenso,
o ópio,
as coisas que ardem como ardem os archotes nas
escarpas da nossa idade,

para quê o tesouro oculto,
a muralha cercada,
as celas com grades de aço temperado nas forjas da
saudade,
o sorriso da primeira infância, devastada pelos
vendavais,

para quê os lírios quebrados,
a mágoa das mães paradas no silêncio dos
quintais,

para quê tudo o que digo como se pedisse perdão?


José Agostinho Baptista (n. 1948), in Esta Voz é Quase o Vento (2004). «Com raízes fundas na poesia anglo-saxónica, uma reflexão imagética próxima da poesia das tradições índias, a vaga sugestão de tom orientalizante, Agostinho Baptista é uma das poucas vozes na poesia portuguesa actual que entendem a poesia como convocação, liturgia recriadora da memória, diálogo com o centro essencial e invisível do homem. Que a entendem como religação a uma natureza primacial e adormecida, mistério, sangue e inquietação» (Pedro Sena-Lino, Público, 8 de Outubro de 2005). «Numa poesia que se gera no movimento e na rejeição do real "os lugares são lugares de passagem e as figuras são figuras de passagem". As figuras femininas "que têm surgido ao longo dos livros são seres ambíguos, até porque são pouco definidos enquanto sexo". Surgem "da mesma forma que surgem os lugares: nunca têm contornos muito definidos". / Novo movimento (aparentemente) contraditório: a poesia oculta, mas isso não implica na sua feitura a vitória da (perdoem-nos a expressão) "cerebralidade": ao contrário, a poesia "aconteceu sempre dessa forma muito torrencial", é algo "que brota e brota sem qualquer programa prévio"» (João Bonifácio, Público, 1 de Julho de 2006).

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