O advento da televisão forçou o cinema a transformar-se,
tal como a fotografia já o tinha feito à pintura. A diferença está em que o
cinema, enquanto arte, contava uma história muito mais curta. As décadas de
1940 e 1950 foram fulcrais, nomeadamente em países onde a indústria
cinematográfica estava estabelecida com uma pujança incomparável. A caça às
bruxas na Hollywood do pós-guerra condicionou, igualmente, as formas de
produção e o tipo de filmes que se faziam. Os vermelhos mereciam o mesmo
tratamento que durante décadas fora dado aos indígenas, era preciso estereotipá-los,
fazer deles assassinos, terroristas, papões. Géneros populares como o western
ganharam imenso com esta politização da sétima arte, podendo desenvolver-se
numa direcção menos superficial do que o mero entretenimento das massas exigia.
Não admira, portanto, que filmes como High Noon (1952), de Fred Zinnemann, Shane
(1953), o melhor de George Stevens, Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray, Apache
(1954), de Robert Aldrich, ou variadíssimas incursões de Anthony Mann — The Furies
(1950), The Far Country (1954), The Tin Star (1957) —, tenham ficado para a
história do cinema universal como exemplos superiores de uma época dourada.
Outro realizador que se deu lindamente no género, com um único filme, foi o
austríaco Otto Preminger (n. 1905 – m. 1986), exilado nos Estados Unidos da
América desde 1935. River of No Return/Rio Sem Regresso (1954) não é apenas “um
inteligente e bem sucedido «western»”, como referiu o crítico e historiador
Georges Sadoul, particularmente hostil à máquina hollywoodesca (repare-se,
porém, na exaltação das inovações técnicas aludidas no trailer). É, antes de
mais, uma monumental recriação da metáfora bíblica do rio redentor, o rio de
Ezequiel onde os homens se lavam dos pecados e matam a sede. Um homem, uma
mulher e uma criança experimentarão as águas deste rio agitado que atravessa o
paraíso fotografado por Eadweard Muybridge, «incrível colecção de cataratas,
rochedos, desfiladeiros, lagos, vales, precipícios e montanhas, o Éden inóspito
da América» (Pedro Mexia). Ele chama-se Matt (Robert Mitchum), procura o filho após
uma temporada na prisão. Foi condenado pelo assassínio de um homem pelas
costas. O filho, que desconhece o passado do pai, é Mark (pequeno Tommy Rettig, celebrizado pela série televisiva
Lassie). Matt e Mark, tal como nos evangelhos. Não é por força da interpretação
que a temática religiosa aparece aqui referida. Várias cenas nos indicam este
caminho. Na realidade, é o pai Matt que explica ao filho Mark a origem do seu
nome. Tal como nos evangelhos. O primeiro plano do filme é de um
homem a derrubar uma árvore à machadada. Podemos supor tratar-se da árvore do
conhecimento no paraíso perdido onde as almas se desencontraram. Logo de
seguida, esse mesmo homem chega a um acampamento de garimpo e cruza-se com um
padre. Apanha do chão um exemplar da Bíblia que o padre deixara cair ao saltar
do seu cavalo. O padre refere-se ao acampamento como Sodoma e Gomorra,
sentenciando que, apesar de ter ali vindo parar como missionário junto dos
indígenas, o homem branco iria necessitar muito mais da sua missão
evangelizadora. E quase logo de seguida damos com Eva, de vestido vermelho, a
cantar One Silver Dollar no saloon improvisado. Não exactamente Eva, mas Kay. Divina
Marilyn Monroe, de viola apoiada sobre a coxa cintilante. Um tratado acerca do
erotismo podia ser escrito tendo por exemplo apenas os planos que Preminger
oferece a Marilyn Monroe. Marilyn a mudar de roupa, Marilyn com duas rachas
enormes num vestido verde, flectindo as pernas enquanto dança agarrada a um
varão, rodeada de garimpeiros siderados, Marilyn a descer um rio completamente
encharcada, a resistir à investida de Robert Mitchum, a ser massajada, Marilyn
maternal, sedutora, frágil e sonhadora, apaixonada. O encontro entre estes
dois, com o pequeno Mark pelo meio, após a descida acidentada do rio e do
confronto com as suas margens sobressaltadas — índios em fúria, uma pantera
esfomeada e dois garimpeiros desesperados são alguns dos desafios —,
é das coisas mais bonitas que alguma vez se filmaram. A cenas tantas, Kay pede
desculpa a Matt. Magoaste-me e eu quis magoar-te, confessa. Matt responde-lhe:
bem, normalmente é assim que funciona. Responde-lhe com esta simplicidade enquanto
lhe massaja as pernas regeladas. Pára e ficam ambos a olhar um para o outro,
nós olhamos para os dois e percebemos a situação: normalmente é assim que
funciona. Olho por olho, dente por dente. Normalmente é assim, mas não tem que
ser. E o rio sem regresso é esse lugar onde podemos limpar-nos do passado e
seguir, como queria o poeta, sem destino traçado.
2 comentários:
Gostei muito deste filme.
é bom sabê-lo
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