domingo, 1 de março de 2015

RIVER OF NO RETURN (1954)


O advento da televisão forçou o cinema a transformar-se, tal como a fotografia já o tinha feito à pintura. A diferença está em que o cinema, enquanto arte, contava uma história muito mais curta. As décadas de 1940 e 1950 foram fulcrais, nomeadamente em países onde a indústria cinematográfica estava estabelecida com uma pujança incomparável. A caça às bruxas na Hollywood do pós-guerra condicionou, igualmente, as formas de produção e o tipo de filmes que se faziam. Os vermelhos mereciam o mesmo tratamento que durante décadas fora dado aos indígenas, era preciso estereotipá-los, fazer deles assassinos, terroristas, papões. Géneros populares como o western ganharam imenso com esta politização da sétima arte, podendo desenvolver-se numa direcção menos superficial do que o mero entretenimento das massas exigia. Não admira, portanto, que filmes como High Noon (1952), de Fred Zinnemann, Shane (1953), o melhor de George Stevens, Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray, Apache (1954), de Robert Aldrich, ou variadíssimas incursões de Anthony Mann — The Furies (1950), The Far Country (1954), The Tin Star (1957) —, tenham ficado para a história do cinema universal como exemplos superiores de uma época dourada. Outro realizador que se deu lindamente no género, com um único filme, foi o austríaco Otto Preminger (n. 1905 – m. 1986), exilado nos Estados Unidos da América desde 1935. River of No Return/Rio Sem Regresso (1954) não é apenas “um inteligente e bem sucedido «western»”, como referiu o crítico e historiador Georges Sadoul, particularmente hostil à máquina hollywoodesca (repare-se, porém, na exaltação das inovações técnicas aludidas no trailer). É, antes de mais, uma monumental recriação da metáfora bíblica do rio redentor, o rio de Ezequiel onde os homens se lavam dos pecados e matam a sede. Um homem, uma mulher e uma criança experimentarão as águas deste rio agitado que atravessa o paraíso fotografado por Eadweard Muybridge, «incrível colecção de cataratas, rochedos, desfiladeiros, lagos, vales, precipícios e montanhas, o Éden inóspito da América» (Pedro Mexia). Ele chama-se Matt (Robert Mitchum), procura o filho após uma temporada na prisão. Foi condenado pelo assassínio de um homem pelas costas. O filho, que desconhece o passado do pai, é Mark (pequeno Tommy Rettig, celebrizado pela série televisiva Lassie). Matt e Mark, tal como nos evangelhos. Não é por força da interpretação que a temática religiosa aparece aqui referida. Várias cenas nos indicam este caminho. Na realidade, é o pai Matt que explica ao filho Mark a origem do seu nome. Tal como nos evangelhos. O primeiro plano do filme é de um homem a derrubar uma árvore à machadada. Podemos supor tratar-se da árvore do conhecimento no paraíso perdido onde as almas se desencontraram. Logo de seguida, esse mesmo homem chega a um acampamento de garimpo e cruza-se com um padre. Apanha do chão um exemplar da Bíblia que o padre deixara cair ao saltar do seu cavalo. O padre refere-se ao acampamento como Sodoma e Gomorra, sentenciando que, apesar de ter ali vindo parar como missionário junto dos indígenas, o homem branco iria necessitar muito mais da sua missão evangelizadora. E quase logo de seguida damos com Eva, de vestido vermelho, a cantar One Silver Dollar no saloon improvisado. Não exactamente Eva, mas Kay. Divina Marilyn Monroe, de viola apoiada sobre a coxa cintilante. Um tratado acerca do erotismo podia ser escrito tendo por exemplo apenas os planos que Preminger oferece a Marilyn Monroe. Marilyn a mudar de roupa, Marilyn com duas rachas enormes num vestido verde, flectindo as pernas enquanto dança agarrada a um varão, rodeada de garimpeiros siderados, Marilyn a descer um rio completamente encharcada, a resistir à investida de Robert Mitchum, a ser massajada, Marilyn maternal, sedutora, frágil e sonhadora, apaixonada. O encontro entre estes dois, com o pequeno Mark pelo meio, após a descida acidentada do rio e do confronto com as suas margens sobressaltadas — índios em fúria, uma pantera esfomeada e dois garimpeiros desesperados são alguns dos desafios —, é das coisas mais bonitas que alguma vez se filmaram. A cenas tantas, Kay pede desculpa a Matt. Magoaste-me e eu quis magoar-te, confessa. Matt responde-lhe: bem, normalmente é assim que funciona. Responde-lhe com esta simplicidade enquanto lhe massaja as pernas regeladas. Pára e ficam ambos a olhar um para o outro, nós olhamos para os dois e percebemos a situação: normalmente é assim que funciona. Olho por olho, dente por dente. Normalmente é assim, mas não tem que ser. E o rio sem regresso é esse lugar onde podemos limpar-nos do passado e seguir, como queria o poeta, sem destino traçado.  

2 comentários:

redonda disse...

Gostei muito deste filme.

hmbf disse...

é bom sabê-lo