sábado, 7 de março de 2015

SHENANDOAH (1965)

Os grandes temas do western correspondem aos grandes temas da história norte-americana: as aventuras e desventuras dos pioneiros, os conflitos com os índios durante os períodos de migração para o faroeste, a Guerra de Secessão, o progresso industrial e o aparecimento de cidades desenvolvidas, a emergência do crime organizado, a oposição entre o mundo rural e os centros urbanos, a febre do ouro. É neste contexto sociocultural que podemos observar a germinação de autênticos heróis, nomeadamente os chefes das nações índias, o cowboy solitários que transportava o gado por trilhos inimagináveis, os primeiros figurões da lei e do crime, militares, aventureiros, empresários sem escrúpulos. Trata-se de um período efervescente cujo interesse recai, sobretudo, sobre os modos informais de organização social e política numa nação sem cultura ou, se preferirmos, com uma cultura neófita desabrochando num confuso ventre identitário: índios, colonizadores de origem europeia, africanos, povos orientais.
Se a linha férrea aparece como símbolo por excelência do progresso, o velho cowboy transforma-se num resquício do conservadorismo. São ambos representações do tempo que nos transportam ora para o passado, ora para o futuro. O búfalo sagrado dos índios arrasta com o seu desaparecimento uma espécie de ancestralidade perdida. E, com tal perda, instala-se um vazio de sagrado que a ambição material busca preencher. Porém, durante a Guerra Civil Americana outros valores se levantaram. Para se compreender um filme como Shenandoah/O Vale da Honra (1965) todos estes elementos devem ser ponderados, sobretudo quando nos é colocado à frente um emblemático James Stewart que já tínhamos visto nos papéis, mais ou menos cruciais, de político em ascensão (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962) ou cowboy voluntarioso (The Far Country, 1954).
O realizador Andrew V. McLaglen (n. 1920 – m. 2014), que trabalhou para John Ford como assistente de realização, oferece a James Stewart um papel de maturidade. A acusação de excessiva convencionalidade é descabida, bastando para desmontá-la o facto simples de numa família com sete homens e duas mulheres só um elemento ser ágil no gatilho: a única filha de Charlie (James Stewart) numa prole de sete. Charlie é um agricultor bem-sucedido, viúvo, pai de família exemplar, orgulhoso dos filhos e da nora, zeloso dos seus e da sua propriedade. Quando a guerra lhe bate à porta, mantém-se neutro (posição tão difícil de sustentar como qualquer outra). Não tem escravos, nunca sentiu necessidade de os ter, tudo o que tem é fruto do seu trabalho, faz questão de o sublinhar, e, por isso mesmo, procura manter-se à distância numa guerra que se aproxima. Resolverá apenas intervir quando o filho mais novo é acidentalmente capturado e feito prisioneiro pelo exército do norte. Charlie partirá então com a família em busca do mais novo.
Tema recorrente nos relatos do Velho Oeste, a busca de desaparecidos, os desencontros, as separações, é filmado por McLaglen com cativante ritmo narrativo. Há momentos de suspense e pausas emocionais em doses equilibradas. Mas o que mais se eleva em Shenandoah é o valor da família, o tal outro valor que a guerra civil exaltou de forma radical. Escusado será dizer que a união familiar nunca posta em causa neste filme, apesar de ligeiras divergências entre o pai e um dos filhos, serve de contraponto à desunião da família norte-americana durante a guerra. É precisamente essa desunião a causa das tragédias, da tristeza e da maldade que a história configura. Nesse sentido, podemos dizer que a transfiguração do bem processada ao longo do filme se faz em contraposição ao mal. O final feliz é ilusório, na medida em que não pode ser isolado de uma história onde um dos filhos foi brutalmente assassinado, outro foi morto por acidente e a nora violada até à morte.
Aí temos um western intenso sem pistoleiros nem sheriffs implacáveis, sem índios selvagens nem cowboys solitários, mas com uma família simples a tentar manter-se unida e serena entre o caos que a rodeia. Sem tomar partido na guerra, Charlie é uma das suas vítimas — aquilo a que hoje os especialistas chamam dano colateral. O seu heroísmo não vem do coldre que não usa, vem de saber amar depois de ter gostado, de ter gostado muito. E de tudo fazer para preservar esse amor. Vem da sua determinação.

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