Casa roubada, trancas à porta. Quem nunca ouviu dizê-lo?
Neste caso, nem as trancas evitaram a tragédia. A sequência de notícias na página
on-line do Público é espantosamente reveladora. Repare-se como onde se diz que
o co-piloto aproveitou medidas pós-11 de Setembro, diz-se também que o seu
gesto irá implicar novas medidas. Até quando? Talvez até dois tripulantes no
cockpit se envolverem à pancada e deixarem cair um avião carregado de pessoas. Andaremos eternamente nisto, a tratar chagas com pó de talco e algodão em rama. É de pessoas que estamos a falar. O tal Andreas Lubitz era uma
pessoa, estava doente e ocultou a sua doença. As pessoas deprimidas normalmente
fazem isso, tentam ocultar as suas depressões. Dizem os médicos que muitas são
especialistas na arte da ocultação. Até meterem uma corda ao pescoço, se
atirarem de uma ponta, deixarem o gás aberto, de fecharem numa garagem com o
motor do carro ligado, ingerirem montes de comprimidos, se atirarem para
debaixo de um comboio em andamento, enfiarem na boca o cano da caçadeira e dispararem
fatalmente, cortarem os pulsos, saltarem da varanda de casa. São assim as
pessoas, as pessoas que não nos interessam até fazerem essas coisas
inesperadas. Ninguém esperava que Andreas Lubitz fizesse o que dizem ter feito.
Os vizinhos dizem que era pacato, os amigos estão incrédulos, os conhecidos
teorizam sobre o assunto e lêem os jornais. Jornais interessados em explicar ao
mundo quem era Andreas. Mas será possível a alguém explicar ou compreender quem
era Andreas? Ninguém quereria saber deste jovem pacato não fosse a tragédia que
provocou. É natural. As pessoas, na generalidade, não interessam. O que as torna
especiais é, por exemplo, despenharem-se nos Alpes matando 149 criaturas
indefesas. O mundo é assim mesmo, está cheio de rapazes pacatos como Lubitz. Desses
que passam por nós incógnitos e acerca dos quais não temos o mínimo interesse. Trabalham
em companhias aéreas, em supermercados, em hospitais, nos bombeiros, na polícia,
ou estão desempregados, emigraram, são vagabundos, andam por aí, algures, uns
medicados, outros cuidando da tristeza com álcool barato e receitas fáceis. O Público
diz que Lubitz não foi o único, antes dele outros derrubaram aviões quando o
piloto se ausentou para ir à casa de banho. Há mijas que custam vidas, dores de
barriga mortais. Pode o piloto ser culpado por lhe doer a barriga? É uma pessoa, as pessoas têm as suas necessidades. Talvez não fosse má ideia pensar em medidas que evitassem estas ausências, tipo passar a urinar e a defecar no cockpit. Ou fazer como certas empresas fazem aos seus empregados (agora diz-se colaboradores), simplesmente impedir-lhes o acesso à casinha em hora de turno. Isto não tem piada, sobretudo não tem piada que
Andreas Lubitz tenha pais. E eles tenham agora que assistir a isto, a este
espectáculo triste à volta do nome do filho. Um nome que também é deles. O rapaz pacato que tinha o sonho de
voar. Andava deprimido. Ninguém sabia. Alguém quis saber?
13 comentários:
Talvez. Assim como há pessoas deprimidas também há pessoas que se preocupam com os outros. É preciso que a sociedade ajude quem está deprimido, mas também é preciso que quem está deprimido perceba que há quem o queira ajudar. Claro que isto é um assunto complexo mas talvez seja bom se falar mais sobre ele.
Não consigo partilhar de nenhuma empatia com um tipo que assassina 150 pessoas. Não é um suicida, é um homicida.
Não vejo a questão pelo lado da empatia. Interessa-me o problema técnico, por assim dizer. A minha questão é: em vez de nos preocuparmos em encontrar medidas que impeçam um doido varrido de levar consigo para a morte 150 pessoas, não seria melhor investirmos mais em medidas que previnam que um tipo chegue ao estado de doido varrido? Detestaria ser mal entendido nesta questão. Não estou a desculpabilizar o rapaz nem a fazer dele um coitado. Estou simplesmente a chamar a atenção para um problema mais profundo: a depressão tem causas, convém estar atento às mesmas.
1) Isto é daquelas cenas por onde vai cair ainda muita tinta e muita especulação...
2) o rapaz estave sempre a respirar. Eu a dormir, drunfado (por acaso, mas só por acaso, não me drunfo) também respiro, ressono e isso...
3) o facto de jovens de 18 anos, ou perto, poderem legalmente ser considerados aptos para pilotar aviões comerciais é coisa que me ultrapassa...
Bem sei que não é uma perspetiva desculpabilizadora mas, ainda assim, é necessária uma certa dose de empatia para conseguir compreender o filme desse ponto de vista.
Não estou segura de que haja muito que possa ser feito para evitar que as pessoas se afundem em estados depressivos que as enlouquecem. A verdade é que as sociedade falham com elas na mesma medida em que nós falhamos com os nossos amigos e familiares a quem acontece o mesmo, debaixo dos nossos olhos. Quando a coisa é grave, o monstro tende a ser silencioso e invisível.
Peço desculpa ao hmbf por me intrometer, mas relativamente ao último comentário da Cuca, gostaria de dizer que a sociedade, quer ao nível do país quer ao nível familiar, pode fazer muita coisa pelas pessoas que estão em vias de se afundarem em estados depressivos graves, começando, por exemplo, por não as considerar como casos perdidos. Peço um pequeno esforço para se porem na pele de quem tem este tipo de problema e imaginarem o que se sentirá ao ler este tipo de comentário. Finalmente gostaria de dizer que a depressão não tem de ser um estado crónico, que as pessoas com depressão na sua generalidade pedem ajuda, e que por vezes basta que sintam que a família e a sociedade ainda não desistiram delas para reunirem forças e superarem pelo menos os estados mais graves da doença.
Desta feita, concordo com o anónimo. Quanto à questão da empatia, não há doses nem meias doses. Um termo de comparação: a lista dos condenados por pedofilia. Sou totalmente contra essa lista, cada vez mais. E não é por empatia para com os criminosos.
Certo, mas o que propõe que faça a sociedade para evitar casos destes? Como é que a sociedade - não estou a falar das famílias, apenas disse que até esses falham - podem evitar que estas coisas aconteçam? Assim, muito concretamente?
A lista dos condenados por abuso sexual é um disparate, ela própria com efeitos criminogenos, que cospe em bibliotecas inteiras sobre a filosofia das finalidades das penas. O tribunal constitucional jamais deixará passar isso e creio que os ideólogos da listinha fazem estes projetos irresponsáveis já a contar com esse travão.
Se o ponto fosse a evitabilidade das coisas que acontecem, então permaneceríamos quietos o resto das nossas existências. E mesmo assim não seríamos bem sucedidos. Coisas destas acontecem, esse é o ponto. E é ponto que, para não acontecerem, certas medidas, tomadas depois dos atentados de 11 de Setembro, foram insuficientes, assim como muito provavelmente novas medidas entretanto apressadamente propostas também o serão. O problema técnico é esse, não há medidas que evitem um tipo deprimido de fazer coisas como o alemão fez. Mas há medidas que podem prevenir não só a depressão mas actos trágicos como o que agora sucedeu. Por isso mesmo, por existirem, pode o mundo ter tanta gente deprimida e estas tragédias serem ainda, apesar de tudo, eventos extraordinários. Isto é, menos comuns do que talvez seria de esperar.
Eu estou convencido de que o mundo em que vivo desenvolveu-se no sentido de excluir o fracasso, e esse é um problema grave. As crianças são desde cedo educadas para o sucesso, ser-se alguém na vida é ser-se bem sucedido. Falhar nas expectativas, gorar ilusões, gera medos, frustrações, abre as portas à tristeza e, por consequência, à depressão. Seria talvez importante começar por aí, não exigir das pessoas que fossem perfeitas. Aceitar-lhes, digamos, as incoerências, as anomalias, as falhas, o erro, conquanto não prejudiquem terceiros.
Um psiquiatra diz-me que tenho tendências depressivas e receita-me químicos, eu responde-lhe que os químicos deprimem-me. Que posso fazer?
Escutar os anseios das pessoas também não é má ideia. Digo escutar, escutar significa ouvir. Algo muito diferente da cacofonia geral em que todos falam e ninguém se escuta, a não ser aqueles que apenas se conseguem escutar a si próprios. Ter quem nos escute é bom, mesmo quando estamos calados. Desconheço os índices de depressão e de suicídio, motivado pela depressão, entre pessoas felizes. Seria um estudo a fazer.
Da minha experiência há muitas medidas concretas que podem ser implementadas pelo estado. Uma delas é encaminhar as pessoas para apoio psicológico nos centros de saúde em vez de encaminhá-las para a farmácia com uma receita de comprimidos. Outra seria apartir desse apoio incentivar actividades em grupo e/ou com a família, quer desportivas, quer culturais ou recreativas, utilizando iniciativas que já existem, quer camarárias, quer de associações, etc. As empresas poderiam não encostar as pessoas que têm uma crise de depressão, vedando-lhes a carreira em prol da tal produtividade, e fazendo com que quem está ao lado viva aterrorizado de que alguém descubra que tem o mesmo problema e o esconda. A sociedade, interpretada como um grupo de pessoas constituído por nós, pode fazer muito mais. Começando por se lembrar de telefonar à família e aos amigos simplesmente porque sim. Se fosse implementada a obrigatoriedade das pessoas falarem umas com as outras metade dos problemas do mundo desaparecia. Eu preferia ainda utilizar um telefone em que tivesse de dar à manivela do que só ter três discos de um compositor extraordinário que se suicidou antes de viver. Sou egoísta, queria ter cinco ou seis, porque a música era divinal.
Haverá sempre (pelo menos) um mais-ou-menos maluco por aí fora, para além das medidas paliativas, hmbf ...
quanto a empatias só me surpreende uma coisa: o ano passado um piloto fez exactamente o mesmo na Namíbia, na rota Maputo-Luanda. Não mudaram as regras de pilotagem (cabinagem). Nem houve tanto choradismo no rincão (e ainda por cima morreram passageiros portugueses).
JPT, se quer que lhe diga nem me lembro de ouvir falar nesse acidente. O seu comentário é pertinente, tal como os do mesmo género que apareceram pós-Charlie. Mas julgo que o que as pessoas escolhem para chorar socialmente está contaminado pelos efeitos da proximidade (compreensível) e da intoxicação mediática (mau sinal). Há dias contei num jornal da noite na SIC 45 minutos, sem tirar nem pôr, para a tragédia do avião. O mundo nesse dia parou, só houve avião nos Alpes.
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