quarta-feira, 4 de março de 2015

VOO RASANTE: RUI COSTA


DIÁLOGO

Não acredites: as pessoas que te falam em diálogo
querem o teu mal. Dizem que a compreensão deve
ser "cultivada" - e esperam bem sentados que te estateles ao comprido
na frente de uma esplanadazinha com vista para o tédio.

(Afasta de ti esse cálice!)
Eles querem o teu sangue mas depois não sabem o que fazer com ele,
não fazem nada com ele,
não o bebem, não o vendem, não o poluem com o teu
olhar desvairado ante o corpo aberto dela, do seu nexo tão
carente de ti.

Que a planta tem que ser regada para crescer, ah por favor -
não compres asas novas para a eterna toupeira.
A coisa verde estende as mãos para alcançar a água -
e depois cresce para o sol, incha,
porque ela usa-o e é usada por ele, e usar e ser usado é que é
o meu desejo cheio, a amizade toda e - foi assim connosco mas já não é -
a essência do amor (essa magra celulite que tu deves alcançar pelo diálogo
na demonstração diária do respeito mútuo e sabiamente partilhado!)

Ainda pensas que te darei uma definição do amor? Dou-te apenas o que não pode ser aceite:
o meu ser luminoso e irascível
- e nenhum deus invoco ou minimizo.

Faz o que quiseres, ou o que puderes, com o que eu te dou.
É para isso, é por isso que (o café está bom)
(e) eu gosto de ti.


Rui Costa
in Voo Rasante - Antologia de Poesia Contemporânea, coordenação de Helena Vieira, Mariposa Azual, Lisboa, Fevereiro de 2015, p. 162.