A palavra intercâmbio inspira-me desconfiança, mais quando
aplicada a uma putativa troca de experiências entre escritores da mesma língua
espalhados pelo mundo. Não percebo como pode um escritor partilhar experiências
senão exercendo o seu ofício e colocando-se ele próprio no lugar de leitor. Normalmente, o intercâmbio assume o significado de viagem
e a partilha resume-se a almoços e jantares de conversa feita e colóquios para
inglês ver. Intercâmbios entre brasileiros e portugueses são um forte
aliciante, sobretudo para quem venda livros e esteja interessado em, como se
diz, penetrar mercados. Daí serem muito mais frequentes em cidades brasileiras do que, vá lá, entre
portugueses e guineenses. Tais intercâmbios fazem-se acompanhar de outro fenómeno, o de elevar à condição de novidade um português abrasileirado. São cada vez mais frequentes os escritores portugueses
que abrasileiram os seus textos, sendo isso especialmente visível, e recebido
até com patético entusiasmo, no universo da poesia. Não percebo que optem sempre
por abrasileirar quando tantas alternativas se abrem no universo da comunidade
de países de língua portuguesa. Podiam "acrioular" a língua com ucôkwe, kikongo,
kimbundu, umbundu, nganguela, ukwanyama, kriol, emakhuwa, xichangana, elomwe… Só
em Moçambique têm para cima de 40 possibilidades, para não falar do tétum de
Timor ou do fang desse país irmão que é a Guiné Equatorial. A insistência no "brasilês" é algo mísera e fixada, ainda que se entenda a sua conveniência e
eventual fascínio. Seja como for, os verdadeiros intercâmbios escapam a tais
assimilações espúrias. Não se exercem tanto no domínio da mera citação,
fazendo incluir aqui e acolá termos caídos do saco lúdico ou articulando
sintaxes que qualquer emigrante pratica com a mais natural das formas, como se
exercem no domínio do conhecimento. E para isso é necessário haver curiosidade
pela língua, não basta a postura interesseira do fica bem. É preciso desbravar
a língua como quem corta mato numa floresta. Um bom exemplo desse intercâmbio
desinteressado e inteligente é-nos oferecido na obra de Ruy Duarte Carvalho (n.
1941 – m. 2010), autor sobre o qual o esquecimento pesará mais cedo do que
seria desejável. Razões para tal só a preguiça conhece. A dos leitores é
compreensível, mas a dos seus pares, que também deveriam ser leitores, é inaceitável. No entanto, e porque voltei
a pegar nele recentemente, recordo aqui um outro exemplo inteligente e nobre de
um verdadeiro intercâmbio exercido no domínio de uma mesma língua praticada em
países diversos. Recordemos um simples poema do livro Descompasso (Moraes
Editores, 1986), de José Blanc de Portugal (n. 1914 – m. 2000):
CONFESSIO QUAM UTILIS
Catecismo do Concílio de Trento
Não me envergonho de passar por ser já carioca
na imagem dos que o não são:
mandrião, apaixonado, amado e traído.
Só não demasiado esfomeado ou duro
me envergonho, sim,
por não ser como eles tão humanos
tão naturalmente impuros
de não ter vindo para cá há uns cem anos
trabalhador, amorudo, querido ou temido.
Me envergonho de não ser como o Manel Cozinheiro
que fazia sambas lindos na Mangueira
português de lei que é sempre brasileiro cidadão do mundo
porque diz sempre mal de todo o mundo
mas entra na roda de samba de uma qualquer esquina.
Me envergonho
de não cantar gritando ao mundo inteiro
como venci a última cegueira
chorando ou rindo o dia inteiro
por amores verdadeiros ou que a gente imagina.
Me envergonho de me não chegar o anel de uns cabelos
queridos
não me chegar o que tive ou tenho de carinhos —
Me envergonho não, querida,
de não ter vergonha dos tempos perdidos
que afinal vão salvando a minha vida.
Não me envergonho de dizer que minhas mãos são passarinhos
voando sempre à espera de te encontrar.
Não me envergonho que tu possas mudar
Se, para mim, sempre igual te hei-de achar.
Não me envergonho que me julgues igual a toda a gente
porque hás-de por força sentir que sou diferente
e não me importo que por um momento
seja tão vulgar teu pensamento.
Me envergonho de, por tantas,
igualmente ter rido e chorado.
Não me envergonho de assim ir vivendo e ter vivido:
Mandrião, apaixonado, amado e traído…
Não me envergonho de alegria e dores:
Traição? Só na paixão; o resto são amores.
Sábado, 13 de Dezembro de 1975; 15 h e 33m do tempo local do
Rio de Janeiro…
O apontamento final não engana sobre o lugar de contaminação
da língua, a qual assume uma plasticidade extraordinária através de simples
variações na distribuição de pronome pessoal, advérbio e verbo no início dos
versos anafóricos. Livro singularíssimo, Descompasso veleja num Atlântico onde
se misturam formas e meios expressivos que aproximam contextos poéticos
multiformes. O brasileiro, fortemente marcado pelo concretismo que Blanc de
Portugal não enjeita. Antes pelo contrário, integra-o em experiências que
transformam as palavras em números, invertendo a lógica do sentido enquanto
busca novas significações rítmicas. Por outro lado, o peso modernista e,
subsequentemente, a herança surrealista portugueses são igualmente convocados. As
5 Odes Mar-Íntimas lembradas por versos de A. M. Lisboa conjugam com especial
alegria esses estádios de desenvolvimento da nossa tradição poética. E depois há
poemas como esse com que encerrarei a prosa, poemas que nos ensinam que o
verdadeiro intercâmbio entre escritores faz-se não deixando morrer o que de uns
há noutros. Lendo, lendo e escrevendo. O resto é espectáculo:
PODER OU QUERER
Será: «querer é poder» ou «poder é querer»?
Até o velho Tobias Barreto escreveu isto
não sei em qual das formas…
Ociosa interrogação? Não me interessa realmente.
O que creio é que podemos tudo o que realmente queremos.
Dos três dons do Espírito Santo — Memória, Entendimento
e Vontade (que ordem admirável em crescendo hierárquico
mas trindade só perfeita quando completa!) —
— vontade o único criador!
Sinto demasiado heteróclita a minha memória;
muitas vezes avaliarei mal o meu entendimento;
a vontade é-me sempre demasiado hesitante por…
falhas de entendimento se não de memória…
Num diálogo escrito há mais de um ano,
a minha interlocutora atingiu nesse ponto a
última verdade quanto às nossas mútuas
claudicações da Vontade, do Querer.
Será que para mim (ou para toda-agente?)
o mais difícil é atrevermo-nos a desvendar
o íntimo do nosso Querer?
Quanto de falso-querer atribuímos
ao que, afinal, é apenas um vago sentir-desejo?
Este inferno de pensar-pensar a que me conduz?
Não sigo no pensar qualquer caminho.
É um pensar-olhar; qualquer coisa como viajar
apenas com os olhos sobre a representação abstracta
de uma região da qual se conhecem apenas alguns pontos
e essa representação, uma carta geográfica, ela mesma
esfumada
e ilegível na sua totalidade e que em nada ajuda a perscrutar
o pormenor.
José Blanc de Portugal, in Descompasso, Círculo de Poesia –
Nova Série, Moraes Editores, Lisboa, 1986.
1 comentário:
Tem razão, o resto é, quase tudo, teatro e faz de conta. Mas que gasta tanto tempo!
Prefiro o primeiro poema. Por tudo, incluindo o jogo com o pronome.
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