No n.º 136 da revista LER (Dezembro de 2014), Nuno Costa
Santos dedicou algumas páginas a João Alfacinha da Silva (simplesmente Alface para leitores). O estilo é o mesmo que Costa Santos já tinha oferecido às
revisitações biográficas de autores tais como Fernando Assis Pacheco ou Ruy
Belo, concentrado naquilo a que podemos chamar o lado positivo da existência, sublinhando
aspectos picarescos, interessado em revelações folclóricas, pouco dado a exames
literários e a inquirições de carácter. É um estilo que, aprecie-se mais ou
menos, permite olhar para os autores através do que eles têm de comuns
mortais. A verdade é que nestes trabalhos jamais poderemos ler algo como aquilo
que em tempos Joaquim Manuel Magalhães sentiu necessidade de afirmar a propósito
de Ruy Belo: «Tudo aquilo que não aconteceu a Ruy Belo mostra os mecanismos da
merda em que nos fazem chafurdar». Ora, algo parecido poderia ser dito acerca
de Alface. Não sendo, ficamos a saber que João Alfacinha da Silva nasceu no dia
24 de Março de 1949, em Montemor-o-Novo, estudou Direito, «andou mais pelo bar de Letras do que pelas prelecções jurídicas»,
mudou-se para Psicologia, no ISPA, tendo também desistido desse curso. Tinha um
humor imaginativo e solto, «à conta de uma doença reumática, era um pouco
azedo», conheceu a mulher numa boleia para a Pastelaria Granfina, era um
pai-galinha, dedicou-se inteiramente à escrita, distribuindo literatura por
jornais, rádio, televisão, foi cúmplice e amigo de Herberto Helder, havia quem
o achasse «tímido, calado, com low-profile», «foi um preguiçoso muito
trabalhador», alguns acusavam-no de elitismo, era cozinheiro exigente, «era um
entusiasmado dançarino», «preservava como valores a lealdade e a fidelidade aos
amigos», «não era de reverências e alianças públicas», «tinha a tensão alta»,
morreu aos 58 anos «depois de um AVC sofrido numa Comunidade de Leitores
dedicada ao seu romance Cá Vai Lisboa». Tudo isto pode ter muito interesse, mas
não ajuda a perceber por que razão um dos nossos melhores prosadores da segunda
metade do século XX praticamente desapareceu das estantes das livrarias, não
tem os seus contos disponíveis nem numa singela edição de bolso, é grosseiramente
ignorado por críticos, professores, gente que pensa programas escolares, metas
curriculares, planos nacionais de leitura. A atribuição do Prémio Camões a
Dalton Trevisan podia ter mudado a nossa tradicional, estúpida e preconceituosa
desconfiança relativamente aos contistas, entre os quais Alface é um dos nossos
maiores. Não mudou nada. Continuamos a olhar de esguelha o conto e a julgar que
quem nele insiste o faz por preguiça ou incapacidade. O livro A Mais Nova
Profissão do Mundo (Fenda, Junho de 2006) reuniu os contos de Alface distribuídos
por dois volumes: Cuidado Com os Rapazes e Outras Histórias (1995) e O Fim das
Bichas é o Princípio das Filas (1999). São histórias geralmente curtas, não
ocupando amiúde mais do que uma, duas ou três páginas, carregadas de ironia,
numa linguagem informal que justapõe experiências num mundo urbano assaltado
pela ruralidade das suas personagens. Nota-se o desafio constante de fugir aos
lugares-comuns da narrativa convencional, inserindo por vezes na página esses
mesmos lugares para logo os desmentir, minar, desfazer com inesperadas paródias
desconstrutivas. Um exemplo da série Lugares, incluída no primeiro volume:
MONCHIQUE
No seu círculo de
amigos, o Fonseca e a Luísa eram os únicos que tinham estado em Woodstok e
ainda hoje conseguiam gerir com mestria esse capital de prestígio. Impelidos
pela lenda, foram viver para um quintarola dos pais dela, no meio da serra
algarvia, onde cultivavam filhos, cenouras e coelhos (e uma ervita) à base de
produtos naturais, sem aditivos químicos nem superlativos tecnológicos. Uma vez
por mês eram visitados por casais amifos. E nessas ocasiões a Luísa fazia uma
enorme panelada de legumes e o Fonseca descia à adega atrás dum tinto que o próprio
Hendrix insistira em gabar. A noite ficava atravessada de charros fluentes e
balidos existenciais (ela por ela). Mais tarde, os corpos generosos recebiam
outros corpos (distraídos) e ninguém se magoava. Isso fica para depois.
No segundo volume a prosa alonga-se, mas nunca perde o
sentido rítmico das palavras e gera ambientes ao mesmo tempo ternos e
humorísticos, mas também capazes de atacar a consciência com uma atmosfera crua
que desafia a moralidade das personagens, das suas acções, dos seus gestos. No
fundo, uma escrita que segue à risca os preceitos do seu autor: «A escrita tem
de derrubar as pessoas do cavalo. Do cavalo do quotidianozinho, do cavalo de
quem pensa já ter lido toda a grande literatura, desses cavalos. (…) A escrita
tem de ser um despertador. Tem de provocar os outros, provocar reacções nos
outros. Não, não poupo nos murros no estômago, mas não o faço gratuitamente, não
provoco pelo princípio, no sentido escatológico. Penso que tenho um bom sentido
da ironia, e a ironia tempera o murro no estômago». Retire o leitor as suas
conclusões:
ANJO AZUL, CÉU NEGRO
Matilde andara o suficiente por bares de fugir para saber
que, no fundo, no fundo da noite é sempre o pescoço de Xerazade a ficar
torcido.
Agora, por um
capricho que desculparemos, ei-la frente ao espelho.
É o espelho uma
peça de imponentes dimensões, herança de família, fiel, moda testemunha de
jogos, lágrimas, devaneios.
Um espelho que não
esquece, com que se pode contar.
Matilde tinha-o na
maior das considerações, até ao dia em que a superfície brilhante recusou
devolver-lhe a sua imagem de mulher habitualmente senhora de si.
Num repente, o
espelho virou baço, hostil, um muro.
Por mais que
pensasse, não percebia por que razão o espelho recusava cumprir o seu papel.
Nada, em consciência,
a acusava: sempre o tratara com estima e cumplicidade, o polira com ternura,
sempre o poupara a interlúdios de excessiva intimidade.
E depois, que
diabo, um espelho só está ali para isso, não se lhe exigindo mais que a sua
estrita obrigação. Ou não será?
E no entanto, este
particular espelho, por qualquer incógnito motivo, passou a não reflectir a
imagem de Matilde, quando esta — já num estado de confusão lamentável — se
sentava à sua frente.
E o estranho, o
mais estranho, é que reflectia toda a gente menos ela. Porquê? Vá lá saber-se
porquê.
Chegou a planear
vendê-lo e, muito incomodada, a arrumá-lo no sótão ou fazê-lo em cacos. Ainda
bem que não foi além das intenções.
Um dia, que coisa,
em que ela o fixava com intensidade e raiva, o espelho desfez-se sozinho e a Matilde,
com razão ou não, o facto pareceu um suicídio.
Foi a partir daí
(por pudor, autodefesa) que ela passou a usar só espelhos recentes, sem memória
nem alma. Ficou, momentaneamente, feliz. Mas viver feliz não chega, quando o
nosso anjo negro nos abandonou.
Morrem-nos entes
queridos, e cá ficamos indo, feridos mas vivos. Morre um espelho antigo, possuído
talvez pelo outro lado da vida, que se suicida em estilhaços, e é o fim do
mundo. Como quando uma boneca foge, e é o fim do mundo.
Matilde
(abreviemos) acabou mal. Perdeu-se para a dança, deixou de saber de onde vinha
a música. A poesia do mal passava-lhe ao lado.
Acabou mal, assim
acabamos todos, lá isso é verdade.
Descrente, cega
para o maravilhoso que enche o sabugo das coisas, ainda tentou um esforço de
regeneração, mas já nada lhe obedecia.
Deixou de fazer
parar navios no mar, de ressuscitar os necessitados, de adivinhar onde correria
a água no deserto.
Propus devolver-lhe
o modo mágico de enfrentar os dias, a que, à míngua de melhor termo, chamamos
prosa.
Nada a conseguiria
recuperar. Matilde era um espelho quebrado. Um anjo negro que perdera o norte.
Como um homem que renega a infância.
Alface, in A Mais Nova Profissão do Mundo, Fenda, Junho de
2006.
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