domingo, 12 de abril de 2015

ALFACE

No n.º 136 da revista LER (Dezembro de 2014), Nuno Costa Santos dedicou algumas páginas a João Alfacinha da Silva (simplesmente Alface para leitores). O estilo é o mesmo que Costa Santos já tinha oferecido às revisitações biográficas de autores tais como Fernando Assis Pacheco ou Ruy Belo, concentrado naquilo a que podemos chamar o lado positivo da existência, sublinhando aspectos picarescos, interessado em revelações folclóricas, pouco dado a exames literários e a inquirições de carácter. É um estilo que, aprecie-se mais ou menos, permite olhar para os autores através do que eles têm de comuns mortais. A verdade é que nestes trabalhos jamais poderemos ler algo como aquilo que em tempos Joaquim Manuel Magalhães sentiu necessidade de afirmar a propósito de Ruy Belo: «Tudo aquilo que não aconteceu a Ruy Belo mostra os mecanismos da merda em que nos fazem chafurdar». Ora, algo parecido poderia ser dito acerca de Alface. Não sendo, ficamos a saber que João Alfacinha da Silva nasceu no dia 24 de Março de 1949, em Montemor-o-Novo, estudou Direito, «andou mais pelo bar de Letras do que pelas prelecções jurídicas», mudou-se para Psicologia, no ISPA, tendo também desistido desse curso. Tinha um humor imaginativo e solto, «à conta de uma doença reumática, era um pouco azedo», conheceu a mulher numa boleia para a Pastelaria Granfina, era um pai-galinha, dedicou-se inteiramente à escrita, distribuindo literatura por jornais, rádio, televisão, foi cúmplice e amigo de Herberto Helder, havia quem o achasse «tímido, calado, com low-profile», «foi um preguiçoso muito trabalhador», alguns acusavam-no de elitismo, era cozinheiro exigente, «era um entusiasmado dançarino», «preservava como valores a lealdade e a fidelidade aos amigos», «não era de reverências e alianças públicas», «tinha a tensão alta», morreu aos 58 anos «depois de um AVC sofrido numa Comunidade de Leitores dedicada ao seu romance Cá Vai Lisboa». Tudo isto pode ter muito interesse, mas não ajuda a perceber por que razão um dos nossos melhores prosadores da segunda metade do século XX praticamente desapareceu das estantes das livrarias, não tem os seus contos disponíveis nem numa singela edição de bolso, é grosseiramente ignorado por críticos, professores, gente que pensa programas escolares, metas curriculares, planos nacionais de leitura. A atribuição do Prémio Camões a Dalton Trevisan podia ter mudado a nossa tradicional, estúpida e preconceituosa desconfiança relativamente aos contistas, entre os quais Alface é um dos nossos maiores. Não mudou nada. Continuamos a olhar de esguelha o conto e a julgar que quem nele insiste o faz por preguiça ou incapacidade. O livro A Mais Nova Profissão do Mundo (Fenda, Junho de 2006) reuniu os contos de Alface distribuídos por dois volumes: Cuidado Com os Rapazes e Outras Histórias (1995) e O Fim das Bichas é o Princípio das Filas (1999). São histórias geralmente curtas, não ocupando amiúde mais do que uma, duas ou três páginas, carregadas de ironia, numa linguagem informal que justapõe experiências num mundo urbano assaltado pela ruralidade das suas personagens. Nota-se o desafio constante de fugir aos lugares-comuns da narrativa convencional, inserindo por vezes na página esses mesmos lugares para logo os desmentir, minar, desfazer com inesperadas paródias desconstrutivas. Um exemplo da série Lugares, incluída no primeiro volume:

MONCHIQUE

   No seu círculo de amigos, o Fonseca e a Luísa eram os únicos que tinham estado em Woodstok e ainda hoje conseguiam gerir com mestria esse capital de prestígio. Impelidos pela lenda, foram viver para um quintarola dos pais dela, no meio da serra algarvia, onde cultivavam filhos, cenouras e coelhos (e uma ervita) à base de produtos naturais, sem aditivos químicos nem superlativos tecnológicos. Uma vez por mês eram visitados por casais amifos. E nessas ocasiões a Luísa fazia uma enorme panelada de legumes e o Fonseca descia à adega atrás dum tinto que o próprio Hendrix insistira em gabar. A noite ficava atravessada de charros fluentes e balidos existenciais (ela por ela). Mais tarde, os corpos generosos recebiam outros corpos (distraídos) e ninguém se magoava. Isso fica para depois.

No segundo volume a prosa alonga-se, mas nunca perde o sentido rítmico das palavras e gera ambientes ao mesmo tempo ternos e humorísticos, mas também capazes de atacar a consciência com uma atmosfera crua que desafia a moralidade das personagens, das suas acções, dos seus gestos. No fundo, uma escrita que segue à risca os preceitos do seu autor: «A escrita tem de derrubar as pessoas do cavalo. Do cavalo do quotidianozinho, do cavalo de quem pensa já ter lido toda a grande literatura, desses cavalos. (…) A escrita tem de ser um despertador. Tem de provocar os outros, provocar reacções nos outros. Não, não poupo nos murros no estômago, mas não o faço gratuitamente, não provoco pelo princípio, no sentido escatológico. Penso que tenho um bom sentido da ironia, e a ironia tempera o murro no estômago». Retire o leitor as suas conclusões:

ANJO AZUL, CÉU NEGRO

Matilde andara o suficiente por bares de fugir para saber que, no fundo, no fundo da noite é sempre o pescoço de Xerazade a ficar torcido.
   Agora, por um capricho que desculparemos, ei-la frente ao espelho.
   É o espelho uma peça de imponentes dimensões, herança de família, fiel, moda testemunha de jogos, lágrimas, devaneios.
   Um espelho que não esquece, com que se pode contar.
   Matilde tinha-o na maior das considerações, até ao dia em que a superfície brilhante recusou devolver-lhe a sua imagem de mulher habitualmente senhora de si.
   Num repente, o espelho virou baço, hostil, um muro.
   Por mais que pensasse, não percebia por que razão o espelho recusava cumprir o seu papel.
   Nada, em consciência, a acusava: sempre o tratara com estima e cumplicidade, o polira com ternura, sempre o poupara a interlúdios de excessiva intimidade.
   E depois, que diabo, um espelho só está ali para isso, não se lhe exigindo mais que a sua estrita obrigação. Ou não será?
   E no entanto, este particular espelho, por qualquer incógnito motivo, passou a não reflectir a imagem de Matilde, quando esta — já num estado de confusão lamentável — se sentava à sua frente.
   E o estranho, o mais estranho, é que reflectia toda a gente menos ela. Porquê? Vá lá saber-se porquê.
   Chegou a planear vendê-lo e, muito incomodada, a arrumá-lo no sótão ou fazê-lo em cacos. Ainda bem que não foi além das intenções.
   Um dia, que coisa, em que ela o fixava com intensidade e raiva, o espelho desfez-se sozinho e a Matilde, com razão ou não, o facto pareceu um suicídio.
   Foi a partir daí (por pudor, autodefesa) que ela passou a usar só espelhos recentes, sem memória nem alma. Ficou, momentaneamente, feliz. Mas viver feliz não chega, quando o nosso anjo negro nos abandonou.
   Morrem-nos entes queridos, e cá ficamos indo, feridos mas vivos. Morre um espelho antigo, possuído talvez pelo outro lado da vida, que se suicida em estilhaços, e é o fim do mundo. Como quando uma boneca foge, e é o fim do mundo.
   Matilde (abreviemos) acabou mal. Perdeu-se para a dança, deixou de saber de onde vinha a música. A poesia do mal passava-lhe ao lado.
   Acabou mal, assim acabamos todos, lá isso é verdade.
   Descrente, cega para o maravilhoso que enche o sabugo das coisas, ainda tentou um esforço de regeneração, mas já nada lhe obedecia.
   Deixou de fazer parar navios no mar, de ressuscitar os necessitados, de adivinhar onde correria a água no deserto.
   Propus devolver-lhe o modo mágico de enfrentar os dias, a que, à míngua de melhor termo, chamamos prosa.
   Nada a conseguiria recuperar. Matilde era um espelho quebrado. Um anjo negro que perdera o norte. Como um homem que renega a infância.



Alface, in A Mais Nova Profissão do Mundo, Fenda, Junho de 2006.

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