domingo, 5 de abril de 2015

DIGO


Digo-o: não se escreve com medo. Devia perguntar-se aos poetas a quem lêem eles os seus versos, antes de os publicarem. Todos passam por essa corda de segurança. O poema de hoje lembra-me um Tempos Modernos, em que os poetas são operários como as poetas são aplicadas donas de casa. Opto pela androginia de género. Gosto de poetas que lêem versos às mães: as mães sentadas de televisor apagado, ouvindo-os, a coragem dos filhos e o pudor das mães, que sorriem como, de manhã, ao levantarem-lhes os lençóis manchados. Nisso ainda são delas, as ejaculações privadas que obrigam a lavar à mão cuecas em água quente e lixívia. Fariam o mesmo com os poemas; e eu, que pouco entendo de poesia, adoraria ler um poema esterilizado por cuidados maternos. As mulheres são diferentes, nenhuma mostraria os seus poemas ao pai. As intimidades das filhas são segredos pregados às costas paternas, quadros fixados numa parede móvel onde confortavelmente se deixam embalar sem que, por isso, os pais o saibam. Todos são paredes de casa expostas ao sol; voltados para fora, são tão fáceis de amar. Não há poeta que não seja filha de seu pai; nisso são equivalentes a eles, filhos de sua mãe.
   E talvez o problema operacional do verso seja esse: a falta de óleo na engrenagem que tritura a familiaridade. Todos deveriam ser pródigos, abandonar o conforto materno e evitar o mijo ou o sémen que manche páginas de livros. Poesia Kleenex é a melhor definição que me ocorre, ao pensar poeticamente na poesia contemporânea; e choca-me que ninguém se tenha lembrado ainda de imprimir versos do Pessoa em guardanapos de papel; ou Camões, que também serviria às saladas de entrada. Já vi xícaras de café com Álvaro de Campos e acho que Agustina, em curtas frases, faria brilharete em qualquer serviço de chá Vista Alegre. Para os kleenexes propriamente ditos, de uso vário, como se poderá mirar à margem da estrada, aconselharia alguma da poesia de 61 que, apenas por oito anos, não foi pródiga na sua auto-enunciação. Agora que a Renova imita a Alchimie du Verbe na produção das mais enigmáticas cores aliadas ao bom gosto genital de cada um, nada há a temer.


Beatriz Hierro Lopes (n.1985), in É Quase Noite (2013). «A escrita de Beatriz Hierro Lopes (1985) nasce a partir do exercício permanente da memória e da consciência aguda da perda. A infância e os seus territórios adquirem o valor do tempo e do lugar onde o mundo se concretizou. A relação com o presente, a efemeridade e a vanidade dos dias que não possuem um espesso lastro de história emocional, conduz a um violento olhar, entre a ironia sarcástica e a elegia de um tempo perdido. O presente adquire, desta forma, uma configuração de antecâmara do que perece, da mortalidade como última redenção. Não há concessões quando a autora procura as marcas possíveis de alteridade que resgatem o quotidiano da morte. É neste rasgão, aberto entre a memória e o presente, que a autora vai encontrando (agarrando) todos os pequenos sinais de salvação numa espécie de caçada, armada com um olhar eminentemente poético: uma conquista travada entre a gargalhada quase infantil e a lucidez da resignação; uma arqueologia íntima transformada em história do mundo» (copiado de aqui).

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