segunda-feira, 20 de abril de 2015

DO EXTERMÍNIO

1.

A cidade encontra um pássaro dentro do
espelho. E nessa visão o homem descobre um nervo,
um sentido. Debaixo de uma fonte apodrece
a estátua. A sua alma debate-se contra os muros.
Desfaz-se numa linha obscura entre rosas.
Também outras flores que o mundo cria
ao amanhecer, escondidas, de costas para uma
grande tela de plástico. E nesse abismo, na cratera
luminosa nasce outra vez o crime desse pássaro.

2.

É de noite que ele dança, fulgurante
e ébrio, como uma espada de sangue
no deserto. A cidade esvazia-se nas casas,
inventa uma árvore morta, um sonho circular
que se escoa num novelo, entre os dedos.
E quando a noite finda e os homens ressuscitam,
ele transporta uma tábua dentro do peito
como um vírus roendo o seu próprio ninho.

3.

Um cântico surge então do crepúsculo.
Um livro cai no meio de um jardim e a ameaça
começa de novo, dentro do espaço doente
do olhar. Há uma planta que sai da terra e nos
enlaça. A sua marca é a de uma vertigem,
como se as veias abrissem os caminhos
que delimitam os ângulos da cidade.

4.

Existir nesse pássaro, nesse espelho
que reflecte os rios, deixar que os seus
crimes se instalem como um risco
cruzado numa folha de papel. E suportar
o choro gravado junto a uma janela, tremer,
sabendo que não é possível voar sem ter
conhecido a água que corre dentro da alma.

(...)


Jaime Rocha (n. 1949), in Do Extermínio (1995). «A obra de Jaime Rocha vem de uma filiação que tem muito pouco a ver com a poesia portuguesa, e parece-nos estranha e estrangeira. Sublinhemos um primeiro aspecto: este lirismo não passa pela enunciação do "eu", que aparece rasurado em paisagens e lugares insólitos, distantes, que se assemelham a fragmentos de uma ficção dominada pelo fantástico. Contudo, há um aspecto, que é uma dor agudissimamente subjectiva, que impregna tudo. Poderíamos talvez dizer, numa fórmula excessiva: a subjectividade não existe do lado da vida, mas do lado da morte. É uma subjectividade que envolve todos aqueles que vão morrer (fórmula ambiguamente particularizante e universal).  (...) A poesia define-se pelo "enjambement", dirá Jacques Roubaud. Neste caso, as ligações de verso para verso, ou transportes, são entre artigos definidos ou indefinidos, ou mais genericamente, entre elementos determinantes e elementos determinados na frase, que aparecem separados das palavras a que estão associados. Isto faz que de certo modo estes versos sejam fragmentações de um discurso que poderia ser em prosa, e que não se define nem pela rima, nem pela melodia verbal. E, no entanto, nós sabemos que se trata de poesia, e que esta poesia nos envolve de uma maneira obsessiva» (Eduardo Prado Coelho, Público, 6 de Maio de 2006).

1 comentário:

bea disse...

Desta vez concordo com o desenho crítico de EPC