Voltei a pegar no século de Günter Grass (1927-2015), que,
em parte, também é o de todos nós, depois de o haver adquirido na extinta Loja
107 decorria o ano de 2001. Com um dispositivo elementar, o Nobel percorre o séc.
XX em 100 pequenas narrativas (quatro páginas cada, no máximo) que versam sobre
assuntos diversos. São múltiplas as vozes que falam e diversos os assuntos, num
horizonte lato onde cabem inúmeros dados históricos, referências pessoais,
desabafos, citações, evocações de carácter cultural, político, social. Por
vezes, são contos. Noutras ocasiões, são memória. Mas são também ensaio
informal, revisão histórica, quiçá exercício literário com o intuito de
compreender o curso do tempo e o papel que o homem nele ocupa. Tudo o que da
História alemã mais recente retemos é abordado, da I à II Grande Guerra, da
construção do muro à reunificação, da Guerra Fria ao neo-nazismo, mas também as
vitórias e derrotas (desportivas, culturais) que aproximam os povos, o caricato
que escapa à historiografia oficial. Grass termina em 1999, convocando as memórias
da mãe, Helene Grass (1896-1954), e do pai, Willy Grass (1899-1979). Para um
português, a história seria outra: 48 anos de salazarismo, a Revolução dos
Cravos, o processo de descolonização e a integração dos retornados, a adesão à
CEE, o cavaquismo, os ouros de Carlos Lopes (1984), Rosa Mota (1988), Fernanda
Ribeiro (1996), as manifestações pela independência de Timor-Leste, a Expo 98,
o Nobel da Literatura… Mas pensemos o que tem sido a nossa vida neste século,
nestes 15 anos de século XXI em marcha. A substituição do escudo pelo euro em
2002, a participação portuguesa na invasão do Iraque com a célebre reunião das
lajes em 2003, o esbanjamento na organização do Euro 2004, mais 10 incompreensíveis
anos de cavaquismo (Cavaco foi pela primeira vez eleito Presidente da República
em 2006), o recrudescimento da emigração em massa, um ex-primeiro-ministro atrás
das grades (supostamente por corrupção, supostamente detido, supostamente para
não prejudicar o decorrer das investigações), a classe política a definhar, uma
sociedade civil encantada com populistas que estrelam nos jornais, nas rádios,
nas televisões. Tudo coisas boas. O nosso século, este século, é um século que pode aprender
algumas coisas com o século passado. Temo que tal não venha a ser possível, tão
empenhadas que as massas andam em aparecer e mostrar-se, agora que o lixo da
sociedade de espectáculo se democratizou com o advento das redes sociais, e tão
alheadas da reflexão e do conhecimento que a generalidade das pessoas se mantém,
deixando campo aberto para todo o tipo de abusos do poder, facilitando a vida
aos vigaristas que chegam às instituições e delas se servem como bem entendem,
distraídos do mundo e dos seus verdadeiros problemas. Um deles à vista de todos,
um autêntico campo de concentração a céu aberto chamado Mediterrâneo. Ninguém
quer saber daquela gente para nada, há anos que no baluarte da gastronomia
europeia naufragam centenas, milhares de pessoas, homens, mulheres, crianças,
ali morrem afogados sem auxílio nem socorro, para vergonha de uma Europa que se
mantém impávida e serena, reunindo consecutivamente, desinteressada do
assunto, atirando o fardo de mão em mão como crianças a brincar num parque de
diversões. Outrora colonizados, os avós, os bisavós, os tetravós dos que agora
morrem eram mão-de-obra baratíssima. Eram gado que servia ao crescimento do
mundo civilizado, tão civilizado que dá vómitos só de pensar como chegou onde
chegou. É a vida, é o tempo, é a história. Coisas do passado. Mas isto agora não
é passado, é o presente. E é um presente estendido no tempo há muito,
ainda que ninguém o queira enfrentar. Em O Meu Século, Günter Grass recorda os boat people no
texto evocativo do ano de 1980, fugitivos afogados ou mortos de
sede, «pessoas que se afogavam diariamente enquanto o Ministério dos Negócios
Estrangeiros e todos os políticos em geral se agarravam a uma legislação herdada
dos tempos dos afonsinos». Eram, na sua maioria, refugiados vietnamitas fugindo
dos escombros, das ruínas, do entulho, dos destroços provocados pela Vietnam
War. De que fogem os de agora e o que esperam encontrar na Europa? Fogem do que
obriga as pessoas a fugir, fogem da miséria. Fogem de uma miséria de que a
Europa não pode lavar as mãos como se não fosse nada com ela, sempre mais
preocupada com a saúde financeira dos bancos, permitindo-se construir sedes ao
preço de 1,3 mil milhões de euros. Fica em Frankfurt. Não sei se do último
andar alguém consegue avistar o Mediterrâneo.
2 comentários:
E se avistarem o Mediterrâneo lá do último andar das mordomias? Muda alguma coisa?!
Não muda. Basta reparar nas soluções apresentadas: Patrulhar melhor. Pôr 12 barcos-patrulha em vez de seis. Isto para terminar de vez com a morte de homens nossos iguais. Que viajam em barcos como o que agora se afundou, sobrelotados, com pessoas encerradas em porões e noutros lugares, escondidas e empilhadas num caixão gigante. Quem lá os mete sabe que vão morrer; não obstante, de certeza que cobra (animais mais desprezíveis não existem).
Quem assiste a esta mortandade há mais de dez anos de braço caído podendo - e devendo, é também para isso que lhes pagamos - mexer-se, tem grande culpa, seja onde for que a esconda. É colaborador passivo em milhares de mortes.
Contudo, a carga parece não lhes pesar. Andam alegres e parvos, contrariados por terem de pensar no assunto, como se nada a ver.
Os italianos têm razão, este é um problema europeu. Mas a ajuda não pode ser esta. Tanto reúne a europa e não encontra solução para o caso; digo que é porque ninguém se dá ao trabalho de querer encontrá-la. Que me parece ter de se procurar também do outro lado, a reunir boas vontades e acção.
Há mesmo pessoas de segunda. De décima qualidade, neste mundo nojento a que pertenço e onde continuo a julgar que basta a alguém ser pessoa para ser digno e lhe deverem os outros determinadas prerrogativas de respeito e protecção.
Direitos humanos, direitos humanos e depois permitem-se coisas destas há tanto tempo que me espanta como é que os energúmenos conseguem dormir. É que viver num mundo assim, me tira-me o sono, desencoraja. Saber-me entregue a seres que têm tão pouco apreço pelo homem, desilude. Roubam-nos o brilho da vida.
Se partirmos o espelho, que poderemos esperar?!
Não vêem nada, só se vêem a si próprios. A torre do BCE tem espelhos por todo o lado precisamente para que só se vejam a si próprios.
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