segunda-feira, 27 de abril de 2015

DOIS LIVROS DE MIGUEL CARDOSO

Um dos maiores desafios que a poesia hoje coloca a quem dela se acerque é o de tentar perceber como pode uma tradição ancestral ser assimilada pelos discursos que lhe dão continuidade. Ultrapassada a época das grandes vanguardas, acolhidos e até vulgarizados os seus processos de ruptura, vamos ouvindo falar frequentemente de filiações, resultem estas de uma ortodoxia castradora da singularidade poética ou de releituras heterodoxas onde cabe de tudo um pouco: aproximações lexicais, puro plágio disfarçado de inspiração (termo capaz de servir para coisa nenhuma), decalques formais, imitações toscas. Passa-se isto na poesia como nas outras artes, sendo por isso frequente a adesão dos públicos a putativos novos discursos por simplesmente soarem a isto ou parecerem aquilo. Mais interessante seria exigir a esses públicos que procurassem o que há de Ser naquilo que “soa” ou simplesmente “parece”. 
A poesia é um campo de batalha onde a realidade e a ficção se digladiam, os poemas são como que os destroços no rescaldo da batalha. Tendo a humanidade chegado a um ponto onde realidade e ficção se confundem numa nova dimensão, a da virtualidade, é natural que também o discurso poético se afirme enquanto mundo de possíveis cujas imagens são refracções resultantes da intensidade exercida pela tradição na forma como percepcionamos o mundo à nossa volta. Não estamos a falar apenas
de diálogos com o passado, de citações e de alusões, não se trata de collage nem de paráfrase, nem sequer podemos garantir estar no território da intertextualidade, domínio que vem fazendo as delícias de academias sempre mais vocacionadas para sublinhar do que para perscrutar. 
Repare-se na poesia de Miguel Cardoso (n. 1976), sendo que o mesmo seria válido para outros poetas da sua geração, e na forma como nos seus livros se processa uma relação de continuidade com a tradição sem cedências ao nível da propriedade de um estilo. Não me refiro apenas à profusão das tradicionais epígrafes, as quais podem apontar em direcções precisas — num pequeno livro como Fruta Feia (Douda Correria, Maio de 2014), elas surgem de Fernando Assis Pacheco, Ruy Belo, Carlos de Oliveira, Virginia Woolf, Ruy Cinatti, Manuel de Castro —, mas também à introdução de citações e de alusões menos objectivas no próprio corpo dos poemas. Deste modo, num poema de Fruta Feia podemos encontrar uma referência ao lugar fictício de Patusan, num outro um trocadilho com um título de Baudelaire — «e as flores mal me sabem a baudelaire» —, logo a seguir uma evocação de Cesariny, uma referência a Apollinaire, uma passagem citada de Aquilino Ribeiro, Ângelo de Lima, Cesário, Álvaro de Campos e Artaud convocados nas estrofes de Lá (Em Alemão, Erlebnis). Repare-se como no trocadilho com As Flores do Mal o nome do autor é classificação de sabor, indício de uma corporificação da literatura que extravasa o domínio da intertextualidade. É como se todas estas referências fossem uma espécie de ADN que o poeta vai largando no curso das suas digressões. 
Em À Barbárie Seguem-se os Estendais (&etc, Fevereiro de 2015) este processo não só se intensifica como se complexifica, na medida em que praticamente todos os títulos dos poemas, sem que nada o indique, são versos colhidos nas obras de Luiza Neto Jorge (É um traço de alarme), Sebastião Alba (Com o cinzeiro cheio, amanheceram), Teixeira de Pascoaes (Todas as cousas ermas, que irradiam), Camões (Mas de abrandar o tempo estou seguro e Por antr’o espesso arvoredo), Carlos de Oliveira (Poisa a lupa, cansado e Se for possível voar sobre tanta aridez), Sophia (Como animal em estação adversa), Rimbaud (Muito depois dos dias e das estações e dos seres e dos países) — este último particularmente central, dado tratar-se da primeira linha do verso Barbare, palavra que Cardoso escolhe para título do volume em causa… De resto, talvez nem seja exacto chamarmos títulos a estes separadores que marcam ao longo do livro sequências diversas. A relação que mantêm com os versos é ambígua, são fulgores que, mais do que desencadearem ou encerrarem o poema, iluminam a ocorrência do discurso. Parecem pontuar sequências de um filme (aparecem regularmente nos versos vocábulos que aludem ao universo cinematográfico: ecrã negro, corte, película, câmara, fotogramas) em construção, um filme que talvez pretenda mostrar ao leitor os processos de realização e de encenação da

linguagem poética, com seus cortes, elipses e hesitações. 
E dentro do filme nós vamos encontrar João Guimarães Rosa — «sertão por dentro vereda» e, escassos versos depois, «vereda por dentro sertão» —, Lawrence Ferlinghetti, geografias diversas (China, América, México, Mitteleuropa, Lezíria, Grécia, Tânger, Índia, Lisboa, «que isto passa-se / afinal em Lisboa / como nos filmes / onde as cantigas / não batem certo / com os ossos fracos»), Eliot, Charles Olson, Allen Ginsberg, Lévi-Strauss, Bataille, referências a escalas científicas (escala de Beaufort, escala de Mohs), ao ensaísta Frantz Fanon, Raul Brandão, Brecht, Ezra Pound, Celan, citações de Rimbaud e de Camões e de Carlos de Oliveira… É certo que esta algaraviada corre o risco de se tornar fastidiosa e até decepcionante, sobretudo em leitores que não estejam preparados para um todo composto de estilhaços. Talvez por isso não seja má ideia referir quão relevantes são as referências a Apollinaire, em Fruta Feia, e a Charles Olson, em À Barbárie Seguem-se os Estendais, isto por se tratarem de dois poetas determinantes, um no contexto das vanguardas europeias, o outro na renovação da poesia norte-americana pós-II Grande Guerra, com teses que contribuíram decisivamente para a relação do discurso poético com outros provenientes, sobretudo, mas não só, das artes visuais. 
A poesia de Miguel Cardoso deve ser situada nesta linha de continuidade com as vanguardas, um campo onde a tradição surge incorporada no processo de desenvolvimento de linguagens alternativas, ou seja, um campo de continuidade com a descontinuidade. Há um pormenor gráfico em ambos os livros que de algum modo o simboliza. Refiro-me à ausência de paginação e de índice, a qual tanto pode merecer a leitura de “poema contínuo” cara a Herberto Helder como a ideia de um “continuum histórico” que liga esta poesia ao mundo a partir do que nela ecoa do passado e nela se projecta de futuro. Neste sentido, o conceito de projective verse introduzido por Charles Olson pode readquirir aqui uma nova vivacidade. Ele afirma-se através de uma paródica anulação do eu a partir da sua constante ficcionalização. Quando num poema de Fruta Feia se diz: «Eu vos saúdo súbitos invernos // ombros curvos e fraco fôlego / olho longo e rouco alento / a gingar nas tocas estreitas de setembro // Eu vos saúdo matinais olheiras / sedentas de amanhãs rangentes // Ó súbitos invernos / Ó matinais olheiras», o que escutamos é uma exultação whitmaniana de sujeito indefinido. Aquele eu é uma outra coisa, é um eu encenado que, tal como o de Whitman, viu, percorreu, foi, esteve, agiu, mas numa dimensão cénica que se contrapõe à “estrada larga” dos factos. Por isso, num outro poema, este mesmo eu também diz: «De Trieste onde nunca estive / vêm-me memórias / com a intimidade de ligaduras apertadas // É que Trieste tem a cadência / das canções que ainda estão por existir // e eu tenho o conforto incalculável dos calos / e o esgar irrequieto dos futuros entrevistos / e sim tenho também em mim todos os erros / e todos os comuns momentos incumpridos»
Que memória é esta de um lugar onde nunca se esteve, ainda por cima de um lugar gráfica e foneticamente tão parecido com um estado sentimental? Talvez seja uma memória poética. Podemos falar de memória poética? Tal como a outra, também esta é fragmentária, mas produz uma cosmogonia onde os tempos se confundem; passado, presente e futuro, misturam-se num discurso de improbabilidades que cultiva metáforas, serve-se de interjeições, discurso capaz de reduzir a onomatopeias as emoções provocadas pelos dados dos sentidos (sobretudo aquilo que os olhos vêem), é uma memória cujas linhas se ligam vertiginosamente, repetindo a conjugação “e” no início dos versos, acrescentando uns versos aos outros, recuperando-os, repetindo-os; a memória poética é uma memória de cortes, como no cinema, onde entre uma e outra cena falam os silêncios, as elipses, «e virá talvez o dia / em que de uma frase a outra // uma coisa acaba outra começa», é uma memória de inversões sintácticas e de envios, de tensões; é, paradoxalmente, uma memória sem princípio nem fim. Porquê paradoxalmente? Por causa dos cortes. Virá talvez o dia em que dos cortes faça o poeta uma alegre continuidade.

4 comentários:

manuel a. domingos disse...

Gosto muito da poesia de Miguel Cardoso (não é novidade: http://meianoitetododia.blogspot.pt/2014/05/miguel-cardoso.html ).

Para mim ele é uma máquina lírica.

Abraço

hmbf disse...

Manuel, a máquina lírica descasca batatas? :-)

manuel a. domingos disse...

:D

talvez seja exagero meu. Mas aposto que sim, que descasca ;-)

Abraço

hmbf disse...

é mesmo de uma dessas que eu preciso, de uma máquina lírica que descasque batatas

vou procurar na rádio popular