quinta-feira, 30 de abril de 2015

QUATRO MADRUGADAS


1

É este o momento primeiro,
a luz que surge por detrás
das colinas, asas de pardal
desenhando espirais, pedras
antigas e musgo nos valados,
a geada queimando até aos ossos.

2

O oriente nasce da escuridão,
vermelho. As árvores, ainda
sem flores, sabem-no.

3

É agora. O clarão do sol a romper as
nuvens perfeitas, geométricas. A noite
rendeu-se. A noite depôs as armas:
silêncio e sombras. As aves hesitam.
E então o vento cresce, a terra acorda.

4

Também o mundo começou assim:
a luz abrindo caminhos através das
trevas. Mas o dia é finito, ainda mal
ergueu a sua claridade e já se apaga.


José Mário Silva (n. 1972), in Nuvens & Labirintos (2001). «Entre o extremo de um lirismo geralmente carregado de emoções e sentimentos que transparecem em cada poema, e um outro pólo representado por uma escrita pretensamente pura, branca ou isenta, que no limite procuraria neutralizar a imperfeição humana, surgem por vezes poetas discretos, serenos, cujo mérito parece ser o de nos falarem de um mundo que sabemos ser o nosso mundo, mas vivido e observado através de um ângulo diferente, que de uma forma quase imperceptível consegue destacar-se e marcar a sua singularidade. (…) Como se manifesta, então, essa qualidade?... Desde logo, por uma notável consciência da economia de cada poema, dos seus limites e da sua adequação a cada um dos momentos, figuras ou situações que pretende evocar; depois, por uma capacidade descritiva que, fornecendo-nos os elementos necessários à compreensão dos textos e dos seus sentidos, sabe que em poesia também não vale a pena explicar demasiado as coisas e deixa quase sempre pairar um discreto halo de mistério, uma porta entreaberta que cada leitor, se quiser, poderá transpor sem dificuldade (mas sem ser empurrado para aí); e, finalmente, por uma subtil contenção expressiva, que resiste aos efeitos retóricos mais fáceis e prefere seduzir-nos mediante processos de ligeira desfocagem da realidade» (Fernando Pinto do Amaral, Público, 2001)

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