Os últimos dias foram especialmente difíceis de suportar,
o diário encheu-se de frases que seria incapaz de partilhar aqui. Frases
pesadas como calhaus que os visitantes deste weblog não merecem ler. Sobrou-me
tempo, pouco, para continuar a trabalhar num livro novo. Li na badana de um
livro de Jean Meckert que era no fim de dias de trabalho extenuante que se
dedicava à escrita. Nota biográfica simples, de certa maneira reconfortante.
Também eu me dedico à escrita nos intervalos da precariedade, aproveitando,
tanto quanto posso, para registar ideias vagas que morrerão, muito
provavelmente, onde nasceram, sublinhar livros que vou lendo ou relendo, sacar
vida do que resta para lá das horas de trabalho.
É num poeta que ando a
redescobrir que encontro este verso: «Vida e vida e vida! — a eterna palavra
que não diz nada!» E na primeira estrofe de um outro poema, estes últimos
quatro versos: «é que eu acho a vida uma coisa estranha, / Alheia, uma coisa
que não é minha / E me pede angústia, sonho, sangue, / E até silêncio, silêncio
em carne viva». Ninguém lê hoje António de Navarro (n. 1902 – m. 1980), julgo
mesmo que se contarão pelos dedos os leitores que o conhecem ou dele ouviram
falar. Nem o entusiasmo de Jorge de Sena lhe valeu. Pretendo, por isso, dedicar
algumas notas posteriores a este poeta. Faz parte da Antologia do Esquecimento
resgatar do estômago do olvido as vozes aí digeridas. Por ora, quero apenas
dar conta deste reencontro comigo próprio através de versos publicados na
primeira metade do séc. XX.
Os poetas sempre escreveram muito sobre a vida,
tanto quanto escrevem sobre a morte. A verdade é que a morte eles nunca a
viveram senão em ideia, a morte é uma abstracção que o corpo assimila à passagem do tempo, com a perda, com a observação mais ou menos atenta da ruína,
do abandono, do declínio. Mas a vida não, a vida a gente vive-a mesmo que a
sintamos alheia. Também sinto muitas vezes que a minha vida não é minha, é das
circunstâncias que me determinam. Noutras ocasiões arrogo-me no direito de julgá-la
e digo: puta de vida. Censuro-me por não vivê-la como queria, engulo sapos,
arrependo-me, vou ao encontro da tristeza com as costas pesadas de frustração.
Ter consciência disto talvez me livre de uma estupidez insuportável, não
me livra de um sentimento que António de Navarro exprimiu muito bem num outro
poema. Cito-o na íntegra:
Anda aqui um poeta estranho
a escrever versos com o vento
na lauda duma folha, e com
uma folha nas páginas do vento…
Com o silêncio todavia
escreve a sua melhor poesia
num infinito verso
que rodopia e canta.
É ele também
que faz aquela mãe,
lívida como um círio,
embalar o seu berço
como se fizesse um verso
branquíssimo (…e hermético!)
e transforma a sua fome
em leite e amoroso delírio
poético.
A expressão delírio poético é-me especialmente cara,
escrevi sobre ela num dos meus livros. Livros que vão para lado nenhum e me
levam com eles a caminho desse lugar onde hei-de encontrar tantos outros como
António de Navarro, cientes de que o silêncio é a melhor poesia e todo o ruído
que em torno dela se levanta não passa disso mesmo: ruído. Um ruído que nos distrai
das palavras e remete para o baú das relíquias termos como lauda ou círio, só
para lembrar dois exemplos.
Metal Translúcido (Signo, 1967) é a antologia que
li ontem. Antes dela, este poeta tinha publicado Poemas de África (1941), obra
marcada pela passagem por Moçambique que levou Jorge de Sena a considerar o
autor «um dos poetas mais originais da poesia contemporânea», Ave de Silêncio
(1942), o extenso Poema do Mar (1957), ao qual dedicarei, em breve, outra
atenção, e Águia Doída (1961), retorno aos ambientes africanos. Metal
Translúcido abre com uma Ode à Manhã excepcional, um daqueles poemas que
merecem, sem dúvida, aquele cuidado que costumamos ter com os melhores, mas
que, neste caso, redundou numa incompreensível negligência. Deixo os primeiros
versos, para espanto de quem ainda se espante com estas coisas:
Nas grandes manhãs em que as mulheres penteiam os cabelos
com gestos longínquos e de bailado…
Nas grandes manhãs
em que uma força vulcânica destrói as metafísicas
e a vida se abre em galgos que correm à desfilada…
Nas grandes manhãs
abrindo nos cravos feitos do nosso sangue…
Nas grandes manhãs
de lirismo e profecia em que um calor misterioso
e um leite igual amamentam os recém-nascidos
a cantarem já a luz que rebenta nos seus olhos
cheios de espanto e de certeza,
os galgos trarão a estepe nos olhos ávidos e longínquos…
Rebentará a manhã
nos cornos duma rena, floridos de pássaros…
E a voz ansiosa e tímida,
violenta e suave
dirá à minha alma cousas vagas mas sibilinas…
E eu cantarei
procurando meus gestos, minhas ansiedades,
minhas dúvidas, no ar e na alma dos que vêm cantando…
(…)
António de Navarro, Metal Translúcido – Antologia, Signo,
Gráf. Santa Clara — Vila do Conde, 1967.
2 comentários:
Realmente não o conhecia. Obrigado por escrever sobre ele.
Não tem o que agradecer.
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