crispado como o mar deste inverno
lembro-me de coisas ferrugentas
anzóis algures na infância uma noção
de cansaço alegre que a maré põe no corpo
o que as ondas murmuram de poente em junho
o despontar do verde a ria calma o primeiro calor
a fertilidade anunciada na cor atmosférica que muda
o cheiro doce da lama numa manhã incendiada de sol
quando a primeira proa faz rumo a terra correr
correr pelas dunas a chamar a gente de casa em casa
levar o sebo e de joelhos na areia untar parais
pô-los todos de feição e olhar
olhar o gesto afoito de coisas que sempre foram
durante dias a excitação de barcos que avaram à praia
de ser pequeno e querer fazer tudo como um homem
o sangue do peixe espesso como água na seda
o impacto fulgurante das cores escamudas um bailado
escolher mesmo ali o que a ajuda leva e o que se vende
se assim for a fortuna do dia caminho para a lota
peixe e mais peixe e mais peixe ainda
conversas de homens fumando cigarros ao canto da venda
setenta e nove setenta e oito setenta e sete chui!
uma sandes e um sumol logo ali ao lado e depressa
safar a arte apanhar carnada ver a mãe a arranjar o peixe
tudo outra vez tudo um dia seguinte sempre fiel ao olho do tempo
amanhã à sêma depois à lula amanhã à ferreira e à bica
descansar na amêijoa ter fé na lua da corvina
que para um ano bem ganho basta ao bom pescar três vezes
e a fome mesmo que nos toque nunca será muita
e tudo será na graça do senhor ou dum par de cornos
e tudo será forrado na mesma medida do que foi ganho
e tudo um oceano imenso de sal desfazendo-se na boca
face à impossibilidade de proferir um rosto à saudade
quando tudo se esgota nas palavras e o que fica
o que fica é uma sensação de lágrimas a romper o peito
que é só tudo quanto me cometeu a juventude
aquela inocência perdida que é uma fonte do mar
que eu queria viver aqui hoje sem mais nada
só areia peixes pássaros e a luz do teu amor
João Bentes (n. 1981?), in Odes
(2012). É dos poucos poetas da sua geração onde se nota uma declarada vontade
intervencionista, distante dos palcos onde a poesia facilmente se transforma em
espectáculo e dos corredores académicos onde os poemas são avaliados ao peso
das citações. As odes anti-triunfais de João Bentes andam pelas ruas, frequentam bairros de pescadores, vão ao mar, capturam
a actualidade social numa linguagem atingida pelos ritmos do hip-hop, são derisórias,
embora assumam nos seus interstícios o sufoco nostálgico daquele que assiste à atroz
transformação de uma certa paisagem de raízes algarvias. Encontramos nesta
poesia uma despreocupação estética, diria mesmo um voluntário desleixo formal, que
reforça o cunho politizante dos conteúdos, focados na denúncia de um tempo problemático
na mesma medida em que testemunham a experiência subjectiva da avitaminose revolucionária. Desconfio que não viva em Lisboa nem frequente a Faculdade de Letras, mas tem aqui mais que se leia.
1 comentário:
Incombustível.
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