quinta-feira, 14 de maio de 2015

SEMPRE A DESCER

Mais dia, menos dia, passou um mês sobre estas palavras:
 
Há dias, no shopping onde trabalho, um jovem deixou a namorada a sangrar depois de lhe partir o nariz com uma cabeçada. Na manhã seguinte, estavam os dois entre a trupe que todos os dias, todos os dias sem excepção, ali se reúne a beber álcool que compram no supermercado e a cravar cigarros aos lojistas em momento de pausa. Passam os dias naquilo, têm telemóveis, não sei se têm pais, não sei sequer se têm país, a vida deles é aquela rotina.
 
Subitamente, um vídeo viral (adoro a expressão) despertou as consciências adormecidas. Cambada de hipócritas. Se não são hipócritas, então são voluntariamente estúpidos. Só não vê quem não quer. Ficaram espantados com o vídeo? Foram apanhados de surpresa? Precisam da porra do vídeo para perceberem o mundo que têm à vossa volta? Mas vivem em que mundo?! Estamos a falar de situações vulgaríssimas. Alguém duvida? É preciso meter o dedo na ferida, é preciso abrir a ferida e obrigar as pessoas a olhar lá para dentro. Estamos a alimentar animais, ponto final, com a cumplicidade de todos quantos julgam tratar-se este caso de uma excepção. Não é excepção nem é regra, é vulgar. E a sua vulgaridade é medonha, porque se deve ela própria a uma sociedade que tem vindo a ser, nos seus pilares fundamentais, alvo de bullying reiterado por um Estado que se demitiu das suas principais funções. E, já agora, por quem se está nas tintas para quem manda. Esperavam o quê de uma sociedade onde as famílias são quase forçadas a desestruturarem-se, com pais e mães que praticamente não falam com os filhos, distribuídos de segunda a domingo por empregos precários, cumprindo horários rotativos com turnos que parecem saídos do séc. XIX? Esperavam o quê de uma sociedade onde os pais foram forçados a legar o seu papel de educadores numa escola esmifrada, reduzida aos mínimos, pressionada por objectivos puramente mercantilistas que olha para os alunos como numa tipografia se olha para a pasta de papel? Esperavam o quê? Esperavam talvez que de uma sociedade onde os professores foram massacrados, perdendo todo o seu estatuto social, reduzidos profissionalmente a uma cambada de imbecis que devem ser sujeitos a provas de aferição, anos a fio de tenda às costas, esperavam talvez que miúdos cuja educação se exerce sob a influência de vídeos virais fossem solidários, tolerantes, cooperativos, fraternos. Cambada de cretinos. Andam há anos a fazer como os macacos, tapam os olhos, os ouvidos, não querem ver, nem ouvir, não falam, não querem saber, mas esperam que o mundo não seja o esterco que cresce a esmo em torno desta indiferença, desta indolência, desta alienação. Pais que não falam com os filhos, pais que se fazem substituir pela oferta de gadgets, pais que não têm sequer tempo para desfrutar com os filhos (eu tenho um fim-de-semana por mês para estar com as minhas e, confesso, quando ele chega tantas e tantas vezes só me apetece estar comigo próprio!), professores feridos na sua dignidade, psicólogos no desemprego a concorrerem para caixas de supermercado e livreiros de shopping, um sistema nacional de ensino trucidado pela raiz, meticulosamente destruído nas últimas décadas em função de um mercado de trabalho onde se pretende mão de obra barata, matéria bruta para servir grandes grupos empresariais que não podem ser competitivos, eh lá, sem exercerem bullying diário sobre os seus trabalhadores, pagando pelos mínimos, exigindo os máximos, impondo objectivos com os quais ameaçam, pressionam, levam à loucura, à depressão, a estados extremos de ansiedade gente que espera levar para casa ao fim do mês o suficiente para pagar gás, água, luz, gasolina, latas de atum e o MEO que cale os filhos. Envergonhem-se da obscenidade do vosso espanto, da vossa admiração. Tão preocupados com o bullying quanto fãs do Ídolos ou do Big Brother ou de outra merda qualquer que exibe televisivamente, em directo, com a complacência de todos e a maior das impunidades, em regime light, esse bullying que tanto vos indigna. A vossa indignação é torpe, é esterco, devia envergonhar-vos a todos. É o princípio desta sociedade pantanosa em que os vossos filhos estão a crescer sem que deis sequer por isso, tão empenhados que estais em partilhar vídeos virais, em tecer comentário inconsequente, em fazer gosto no link disparatado. Esta é a sociedade que têm vindo a alimentar, e será sempre a descer, sempre a descer, sempre a descer, até que o estrondo da queda vos acorde quando for tarde demais. Sejam exigentes, porra. Acordem.

10 comentários:

Catsone disse...

Meu caro, esta sociedade está alienada com as luzes dos telemóveis e a estridente voz da Teresa Guilherme. Uma sociedade que mimetiza um Realitt Show de 3ª. As pessoas andam completamente alheias dos seus direitos e deveres e, verdadeiramente, pensam que vivem como nos blogs cor-de-rosa e programas televisivos do Jet 7. A verdade vê quem todos os dias conhece casos como o desse vídeo que me recusei assistir: já me chega a verdade todos os dias.
Bom dia para si e parabéns pelo texto. Se permitir, gostaria de o partilhar.

rff disse...

Clap, clap... Isso tudo, tudinho.
Abraço

Anónimo disse...

Só para dizer que mais acertado era difícil.

Terapia das palavras... disse...

Concordo inteiramente.!!!

O teu post devia esse sim ser "viral"..

Parabens pela tua excelente abordagem,,a este assunto..

Cada vez mais os valores estao invertidos,,,

Bom fim semana!

E tens uma familia linda, :)

Anónimo disse...

o comportamento que os jovens exibiram no tal video viral é reproduzido diariamente por adultos de uma forma muito mais grave. no comportamento adulto há a normalização e a aceitação da humilhação como forma de vida, nalguns casos até a sua institucionalização. assim de repente, além dos reality shows, lembro-me das praxes universitárias.

esta institucionalização da humilhação faz parte da lógica concorrencial a que a "nossa sociedade" tem de obedecer. ser humilhado para depois humilhar e ensinar a humilhar funciona como uma forma de seleccionar os indivíduos. o mérito também entra aqui algures.

zé.

hmbf disse...

Catsone, por mim pode partilhar o que quiser. Obrigado.

Rff, abraço.

Terapia das palavras, obrigado.

Zé, de acordo. E morte às praxes!

Pedro Góis Nogueira disse...

Ora nem mais. No ponto e na ferida. E não toca apenas numa ferida, toca em várias, muitas, não fosse toda esta trupe de anestesiados também alvo de bullying diário e constante, como deixaste aqui muito bem escrito e escarrapachado. Só não vê quem não quer ou anda a dormir, é mesmo isso: não acordem não e ainda morrem é dos anestésicos... Um abraço

Anónimo disse...

É sempre bom encontrar um texto como este, depois de me auto flagelar pelos comentários que por aí grassam na "www./pt"

Menina Marota disse...

Ao ler este texto recordei Mia Couto e o seu texto "Geração à Rasca".

Ainda bem que nem todos os jovens, nem todos os pais, nem todos os professores se devem rever neste texto.

A actual sociedade é fruto de si próprio, desculpem dizer isto.

A actual sociedade, onde felizmente não me revejo, não tem fibra, não ergue a cabeça, não enfrenta. Não tem instinto de sobrevivência.

Não pensem que falo de cor. Sei o que é a dor, o desespero, o criar filhos, (com um marido doente durante 14 anos) e bater o pé em muitos lados.
Hoje olho para os meus filhos e vejo quão batalhadores eles são.
E trabalham e saem de um e tentam logo arranjar outro mesmo que as suas qualificações sejam superiores eles não se lamentam, querem é trabalhar, querem levantar a cabeça com dignidade e não viver se subsídios nem de esmolas.

Felizmente que há quem não se reveja nesta sociedade e não deprima com facilidade quando a desgraça lhe bate à porta.




S

margarete disse...

Henrique: vem a meus braços!


Menina Marota, o texto não é do Mia Couto (http://ma-schamba.com/1035905.html)