DÍSTICO
O mundo para mim
Na sua expressão que vale
É só poesia…
Eu já fui a raiz
Das árvores, das flores e dos sonhos,
Dos rios e dos seus silêncios;
Eu já fui o adorador dos pássaros,
Amante autêntico dos pássaros todos,
Porque fui nos seus voos delirantes e amorosos,
E me possuí no espaço
E me feri no tempo,
Me feri porque desferi voos que saíram da minha angústia
Quando fui a rosácea das chagas e das pústulas,
Ferindo-se, porque sinta em mim próprio a humanidade
inteira.
Eu já fui e sou,
E sou, podeis crer,
O ébrio de todos os mares,
Bem simplesmente, porque me mendigo
Em todas as emoções e as vivo com coragem
E calo
Porque também sou o amante de todos os mendigos que levam a
alma,
E a comem, e a dilaceram e a desfazem,
Mas, ai!, a justificam também
Porque, sem ela, a sua fome seria uma alcateia de lobos
Devorando-se a si próprios…
Eu sou, vida, o místico da tua poesia,
O amante que se desvenda e canta
Cheio de pena de ser tão pequeno
Que não seja a natureza inteira,
O inteiro mistério,
A inteira luz,
O sonho todo que há para sonhar enquanto houver mundo;
A harmonia impossível que, delirando,
Às vezes torno possível num lampejo
E o beijo que a vida inteira dá no inteiro homem.
Mas o que eu sou é apenas
O nada absoluto que canta para salvar-se;
O que constrói avenas
Das tíbias dum próprio sonho que anda,
Por força da sua febre e dos seus desânimos,
A crucificar-se na ânsia…
Beleza, vem beijar-me
Que me faz bem à alma,
E dá-me ao menos à natureza,
À natureza sem teorias nem dogmas,
A pensar em pássaros
E a pensar em águas que cantam…
E, se tu puderes, aprende, homem,
Alguma cousa,
Aprende com uma flor
A não ferir nada
E a aceitar tudo com resignação e grandeza
Para que tudo seja maior.
E sei que as flores não têm sentidos
Ou têm outros…
Deixa-me, deixai-me (mas quem, mas o quê?...)
Ser o litânico da terra, da terra mesmo,
Que há-de ser o meu espasmo e vir possuir-me
E que ela (poderá?) possa ter os meus sentidos
E eu possua a humanidade inteira
Desfeito e desfazendo para erguer e fazer tudo,
Humilde, apagado, silencioso,
Sentindo, todavia, os passos de todos os tempos,
Caminhando para o futuro
Sobre o meu corpo aberto como o da mãe.
Podes ter a certeza, alma minha,
Em ti, eu sou apenas o teu amante,
Um amante fadista e de naifa
Que te ama e te golpeia,
E te morde e com loucura te enlaça,
E te desfaz e te pulveriza
Para que, ao menos, do seu sortilégio
Caia uma poalha sobre as cousas…
Mais fino, eu sei,
Que a cinza mais calcinada
Que fique num forno crematório
Ou o pólen criador que fica no nectário duma flor.
Que enfim
Me abençoe e me esconjure para ser exactamente como é,
E eu, quando não altere o ritmo das cousas,
Faço-as dentro de mim…
Sobre o meu peito, nascerá uma flor e passará um homem…
Vai, alma, vai, liberto-te da tua prisão
Porque quero e desejo que contes tudo ao teu coração.
(A minha estética é feita de coração,
É feita à base de coração
O coração de todas as pombas de que se esqueceram aqui,
Tempestuoso, e surdo e sombrio,
Mas possesso de luz,
E, depois, esse embrulho,
Cosido a cordas de qualquer instrumento.
Que ele todavia, saiba
Que um dia irá parar ao entulho,
Como o tempo, e afinal os astros, as estrelas e as teorias.
Como o tempo, e afinal os astros, as estrelas e as teorias.
António de Navarro, in Poema do Mar, Portugália, Novembro de 1957, pp. 191-194.
3 comentários:
que ânsia, a de António Navarro. Eu já vi os mortos que repousam calmamente. E aqueles de quem se diz, "morreu a dormir, não deu por nada". Contudo, creio firmemente que o abandono da vida não é fácil. A gente pode até entregar-se de alma à morte, mas o corpo é um organismo que a não quer.
Ora isto não tem a ver mas foi o que me lembrou ao ler o poema.
Que coisa tão boa!
bea, julgo que tem tudo a ver
cuca, também acho
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