sexta-feira, 12 de junho de 2015

FICHA QUOTIDIANA


Um dente nada é no teu corpo laborioso
mas na semana em que fores ao dentista
esqueces a criação do mundo
Marx   Aristóteles e Von Braun.
O terramoto de Lisboa pode ser uma cárie
e a subida ao Evereste
um pé torcido.
Excedemo-nos de frases   ideias   inventos
sistemas   equações   galáxias
mas das coisas grandes   do resplendor dos mitos
restam ao fim do dia papéis de embrulhos
e a electricidade nas ruas ensonadas.
Pensando bem   objectivamente com o ovo da costura
entre os dedos picados
sabes os anos-luz que nos separam da Andrómeda
e ao cabo de vinte séculos descobres
que talvez Cristo seja cósmico ou apenas um berço de palha
mas recomeças invariàvelmente o teu dia às oito
com um bocejo de forçado ignorado
e comes torradas prevendo que ao bater das doze
te darão migas de coentros.
A tua contagem lunar de funcionário
tem por alvo a casa de banho
onde fumas cigarros ilícitos
e mesmo que Frank Borman chegue à Lua
e a tua espécie se extinga dentro de um milhão de anos
não deixarás de seguir pela direita   apesar da teimosia dos Ingleses
e de abotoares o sobretudo pensando na gripe asiática.
Tens o nariz perfeito e para isso adoptaste figurinos de beleza
o teu engenho refundiu a terra e gerou alegorias
e nelas incluíste a Revolução de Maio e as marcas de automóveis
fabricas lacas para o cabelo polvilhadas de metafísica
mas basta um dente para te desfigurar
e lá se vão as teorias.
És belo porque belo te quiseste
belo   magnífico   feiticeiro
o mundo saiu-te das mãos como uma órbita corrigida
mas se o dente está fora do sítio
ninguém te vê a flora azul dos olhos
ou o bailado do gesto tendo por debaixo
as montanhas que dominas.
A Cassiopeia é longe quando a broca te perfura
ter sono é uma verdade como a fome e o dicionário
e os visons continuam a justificar adultérios.
Neste quotidiano das oito às onze
podes ser tudo ou   apenas um dente
que de desfeia.


Fernando Namora (n. 1919 - m. 1989), in Marketing (1969). «O seu terceiro livro de poesia, em 1941, teve a importância histórica de iniciar a colecção Novo Cancioneiro. Durante quase vinte anos, até 1959, a sua actividade confinou-se à ficção, em que granjeou enorme prestígio, através de romances e narrativas que o colocaram na primeira fila do neo-realismo, de que evoluiu ulteriormente para uma mais ampla temática. O longo silêncio poético fez injustamente esquecer quanto sobretudo o livro de 1941 [Terra] contribuíra decisivamente para fixar certas linhas rurais e humanitárias do neo-realismo na poesia, que, nos primeiros livros, estavam ainda muito identificadas com o tom melancólico e sonhador de alguma poesia menor da presença» (Jorge de Sena, in Líricas Portuguesas). «Fernando Namora, cuja poesia desde 1937 se reuniu em As Frias Madrugadas, 1961, 6.ª edição 1978, e que principiou, em prosa, pela ficção sobre a adolescência em moldes presencistas (...), notabilizou-se pelo que, em refundição, viria a ser o único romance neo-realista da mocidade universitária (Fogo na Noite Escura, 1943, 14.ª edição ref. 1988» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura).  

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