A primeira das quatro biografias reunidas na Vida de Paulo
Leminski é dedicada ao poeta negro Cruz e Sousa (1861-1898), filho de escravos
adoptado pelo proprietário de seu pai, um mestre-pedreiro, que contra todas as probabilidades
aprendeu a ler e a escrever. É no entretanto da análise poética levada a cabo
por Leminski, sempre atenta ao detalhe e minuciosa nos aspectos que julgaríamos
menos relevantes, que encontro este argumento fortíssimo contra o meu ateísmo. Fala-se,
refira-se a título de introdução, na capacidade que a cultura negra teve para
resistir a um violento processo de aculturação que, por exemplo, praticamente
exterminou a cultura do índio. Estamos no campo da citação da citação:
«No
jornal, uma entrevista recente com o maior teatrólogo da Nigéria, um
intelectual de esquerda:
— Os brancos nos trouxeram coisas de valor. Como o
seu pensamento científico e filosófico, incluindo o marxismo. Mas o preço que
temos que pagar é alto demais. O ateísmo é a morte dos deuses. Com a morte dos
deuses, vem a morte das danças, que são para os deuses. Com a morte da dança,
vem a morte da música, que acompanha as danças. Ao adotarmos filosofia ateia,
estaremos matando toda a árvore da nossa cultura. Um marxismo, para nós, não
pode nem deve negar nossas crenças. Porque estaria negando a nós mesmos».
Imagine-se, por arrasto, o que seria da poesia com a morte da música. Esta inquestionável
ligação da produção artística ao culto do sagrado tem uma enorme força, sendo indesmentível
em termos arqueológicos e ressuscitando o velho problema do ovo e da galinha:
primeiro os deuses ou a arte? Eu tendo a acreditar que foi a arte que gerou os
deuses, mas mesmo nesse domínio reconheço não poder escapar ao pântano da fé.
Produtos
da fantasia, por certo, mas vinculados a uma necessidade física, uma
necessidade até de sobrevivência, os deuses, enquanto personagens fictícias do
reinado metafísico, expressam (a palavra é mesmo esta) um modo de olhar para o
mundo, uma perspectiva, um modo de sentir o lugar do homem na vasta geografia
natural, expressam um modo de estar com a Natureza que, nas suas múltiplas
variantes, se resumiu a tentar dominá-la (monoteísmos) ou simplesmente aceitá-la,
venerá-la, procurar com ela um estado de fusão integrador (paganismos).
Daí que
o grande desafio do ateísmo não seja negar os deuses, como quem se ocupa de negar o
que à partida considera inexistente, mas antes empenhar-se em impedir que o deus único das três grandes religiões se imponha pela força a todo e qualquer culto do sagrado que não se reconheça na arquitectura fascista dos preferidos e dos eleitos. No fundo, trata-se de garantir que o motivo para a dança, para a música, para a poesia se mantenha vivo.
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