segunda-feira, 29 de junho de 2015

"O AMADOR AO RÉS DAS ÁGUAS"

   Os dois últimos livros de Herberto Helder ocupam um lugar singular no Poema Contínuo, algo que, de certo modo, parece contradizer a própria ideia de continuidade numa obra que sempre manifestou mais descontinuidades do que aparenta. Quem leia atentamente os Poemas Completos dificilmente poderá ficar agarrado ao preconceito de que entre os versos de O Amor em Visita (1958) e Servidões (2013) não existiram, por assim dizer, desvios, inflexões, paroxismos que o poeta foi tratando ao longo do tempo, sendo contínuo apenas esse trabalho de revisão e de exame que um título como Poemas Canhotos (Maio de 2015) parece contradizer. Canhotos, supõe-se, porque não poderão ser sujeitos ao tal exame e à tal revisão do autor, embora possam e devam merecer a atenção dos leitores.
   Mas a singularidade dos últimos livros começa, antes de mais, na polémica encetada por uma crítica que, como já tinha notado Manuel de Freitas, se dividiu sempre entre «dois pólos irredutíveis. De um lado, uma ingenuidade patética (com laivos, por vezes, de pura patetice),
que se caracteriza por um distraído optimismo hermenêutico e pela ligeireza obstinada com que pretende fazer valer determinados preconceitos estéticos. Nos antípodas desta crítica doméstica e contentinha, que sai de chinelos para o cosmos, surge a extrema e apaixonada lucidez daqueles que a H.H. têm dedicado poucas(?) mas justíssimas palavras» (Cf. Uma Espécie de Crime: Apresentação do Rosto de Herberto Helder, &etc., Março de 2001). Desta feita, porém, a “extrema e apaixonada lucidez” (conjugação perigosa em termos de lógica aristotélica) foi anterior às preocupações hermenêuticas, e também ela meteu os pés pelas mãos. Ainda antes de se julgar o livro, o que, no caso, seria sempre um exercício contaminado pelo peso tremendo que o nome do autor ocupa nas cabeças de quem vende crítica sem exercê-la, recaiu toda a atenção no lado material do acontecimento.
   A transferência de Herberto para o maior grupo editorial português podia ter estado ao nível da transferência de Figo do Barcelona para o Real Madrid, não fosse o mundo do futebol muito mais "apaixonado" do que o da poesia. O campo da poesia é o da “extrema e apaixonada lucidez”, daí que alguns tenham partido para a análise do livro colocando os pés, desde logo, no degrau mais instável. A Porto Editora não é apenas o maior grupo editorial português, é o grupo de alguém que em 2010, em entrevista ao Público, dizia que «Se me perguntar se daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, eu dir-lhe-ei que não»; dois anos depois, em 2012, adquiria a Assírio & Alvim, editora com um dos mais relevantes catálogos de poesia em Portugal (Herberto entre os demais); em 2014, depois do abanão provocado nos "mercados" por Servidões, impunha aos clientes das suas livrarias um limite na compra de exemplares de A Morte Sem Mestre (como hoje se impõe na Grécia um limite de euros por levantamento nas caixas MB); em 2015, com a morte do poeta, encheu os livrinhos com autocolante de desconto e levou-os ao Top dos mais vendidos, ao lado de Pedro Chagas Freitas, do prisioneiro 44 e de Isaltino Morais. Um luxo com cartaz a condizer. Se quisermos termo de comparação, perante tais tormentos, certa crítica, porventura mais ortodoxa na sua relação ambígua com o mercado da literatura, comportou-se como alguns fãs dos Metallica quando Nothing Else Matters os elevou aos píncaros da popularidade: Herberto vendeu-se.
   Este discurso acontece porque tínhamos do poeta a (estúpida ou ingénua) imagem do último dos nossos românticos. Vale a pena citar Silvina Rodrigues Lopes,a propósito desta concepção de autor que ressitua o seu papel no mundo actual: «A figura de autor que se pretende hoje impor não é uma cópia do génio romântico, glorioso e atormentado pelo excesso da Natureza que o arrebata (o que não deixou de ser capitalizado simbolicamente na construção de figuras lendárias e no culto do heroísmo da extravagância que se sobrepunha às obras), é sim a figura daquele que pretende produzir e gerir uma obra que, não sendo um dom da natureza, também não pode escapar ao controlo, ou à dependência, de uma intenção que presidiu ao processo de criação, ou produção. “Criação” tornou-se em muitos casos sinónimo de “mediatização”, “mediação”, mediania. Acabar com a estranheza em nome do reforço da comunidade é o lema que faz com que o autor se torne omnipresente em entrevistas, convívios e, sobretudo, opiniões. A sua presença (e em alguns casos a filmagem de arredores vários dos objectos propostos) torna-se impositiva para uma apreciação que de outro modo seria impossível» (Cf. Anomalia Poética, Vendaval, Novembro de 2005). Ora, o autor de Poemacto era o anticorpo desta mediania, não dava entrevistas, não aparecia em convívios sociais, não se lhe conheciam opiniões sobre concursos de talentos. Celebrizou-se pela negação do seu tempo, ou seja, pela recusa em se integrar numa dinâmica castradora da tal Criação.
   Quer a desfortuna deste nosso tempo que os românticos sejam comidos pelo seu romantismo, daí que os dois últimos livros do Poema Contínuo se imponham também, na sua descontinuidade, enquanto negações da figura de Autor que, ao rejeitar-se sob a forma de estátua, como que denega igualmente a mitologização de que tem vindo a ser objecto na

forma de poema. A Morte Sem Mestre e Poemas Canhotos causaram estranheza aos órfãos de mestre, uma estranheza algo pacóvia nos tempos que correm pois a “apaixonada lucidez” de quem lê devia ser tão desinteressada como a de quem escreve. Mas nunca é. Sabendo, pelo menos desde Platão (julgo que o Fédon ainda se leia nas escolas), que estamos na vida para aprender a morrer, como aceitar que esta morte, a morte antevista pelo poeta, não tenha mestre? E logo num mestre da palavra? E logo numa palavra com tantos falsos mestres?
   Em boa verdade, estes livros relevam da mais básica e, também por isso, a mais fundamental das consciências: na morte estamos completamente sós, cada um vive a sua sem lhe ser possível viver a dos outros. Só partindo deste princípio, e dos problemas que  o mesmo levanta, se torna possível ler o seguinte poema sem ser apanhado em contramão: «o António Ramos Rosa estava deitado na cama contra a parede / e deu meia volta sobre si mesmo / e ficou de cara voltada contra a parede / e fechou os olhos / e fechou a boca / e ficou todo fechado / e então morreu todo / fundo e completo de uma só vez / e apenas ele no tempo e no espaço / e só agora passado ano e meio eu compreendo / como era preciso ser assim tão íntimo para sempre / tão compacto / mais que o mundo inteiro /  — e ele sou eu» (Poemas Canhotos, p. 39). Porque nada foi acidental num dos últimos livros, o poeta o disse, em epígrafe, no penúltimo, podemos supor ter havido nesses dois objectos derradeiros uma abertura ao mundo que só os hipócritas poderão considerar desistente. Uma abertura depois de compreender que a morte é ficar todo fechado no tempo e no espaço, completamente e radicalmente só.
   Dirigindo-se ao “bom leitor impuro”, como outrora Baudelaire se dirigiu ao “hypocrite lecteur”, Herberto exalta mais uma vez a pureza da linguagem, do poema, a qual se perde no momento da leitura com propósitos hermenêuticos que recusem ou não entendam a autonomia da palavra perante o leitor. Neste sentido, há toda uma continuidade que vem do Prefácio: «— E de tudo os espelhos são a invenção mais impura» (Cf. A Colher na Boca). Porquê? Porque o seu reflexo não é a coisa reflectida, porque a natureza da coisa reflectida só em si reside, na mesma medida em que a interpretação apenas se aproxima, enquanto reflexo, do fôlego autêntico da respiração que o poema encerra. Impuro como um espelho, o leitor devia perceber que distância o separa daquilo que lê. Mais, devia perceber que distância o separa de quem escreveu aquilo que ele lê. Mas não percebe, ilude-se como quem se vê a um espelho e presume estar no reflexo do que vê o princípio e o fim da realidade.
   O que há de perturbador nestes dois últimos livros não é, portanto, o desvio e a negação de uma construção mitológica que o leitor arquitectou acerca do autor, mas antes a forma como o autor se expõe, a forma como se abre ao mundo, ao revelar-nos a sua aproximação da morte (verdade última!). Desde logo, utilizando um discurso corriqueiro sobre gestos quotidianos que são banais na sua natureza, mas capazes de assumir significados extraordinários quando usurpados pela “apaixonada lucidez” dos hermeneutas. Tem voz de pastelaria: «Cristo foi uma espécie de marxista-leninista mas com alguns escrúpulos extra-partidários»; queixa-se «do preço das bilhas de gás»; foca-se na «vida quotidiana»; atormenta-se «a meio de uma tarefa leve como pentear-se» e enquanto faz a barba: «¿que interessa fazer a barba se é tudo para cremar, / desde as unhas dos pés aos espelhos soberanos — / Leonardo, Camões, Newton, Amadeus Mozart, / et coetera / que interessa?»; revolta-se contra a «gente esfaimada»; questiona os poemas, da sua mais alta altura à baixa vivência de quem os produz; penetra os domínios mais triviais da vida literária para concluir, não sem ironia: «fico tão feliz quando vejo como os golfinhos são inteligentes / tão subtis no súbito entendimento das intenções segundas que temos em relação a eles / se lhes dessem a ler bons poemas maior proveito teriam aqueles que os escrevem / do que têm com A ou B». E o poema continua, resvalando em evocações críticas de gente mais ou menos declarada, assumindo uma humanização violenta da linguagem num poeta que foi ao longo dos tempos vítima dos assombros e das assombrações que provocou em quem o lia.
   Há que compreender que a escrita de Herberto Helder nunca partiu de um «qualquer quadro comunicacional. A indeterminação do sentido é um fim em si, abrindo a interpretação do texto em diversos sentidos, em vez de condicionar a leitura numa só pista interpretativa» (Cf. Pedro Eiras, in A Lenta Volúpia de Cair, Quasi Edições, Março de 2007). Singulares no Poema Contínuo, estes últimos versos, porque de algum modo contradizem essa indeterminação de sentido e se sujeitam ao que sempre evitaram, uma interpretação condicionada pelo tom directo, cru e cruel do discurso: «e eu, que em tantos anos não consegui inventar um resquício metafísico, / ponho todo o empenho no trânsito das minhas cinzas: / oh retretes terrestres com destino final nas grandes águas marítimas: / glória atlântica, / índica megalomania das tripas!» Esta morte já pouco tem de metafórica, centra indiscriminadamente o homem na figura do sujeito poético, retira à palavra a sua índole plural e determina o sentido. Há tanto Herberto nestes como noutros dos seus livros anteriores, o que deixa de haver é espaço para mitologizações da poesia, do poema, do poeta, desmitifica-se o mito para trazê-lo à terra onde, afinal, tudo aconteceu:


de tal maneira no tempo se é que se enganam de tal maneira
sempre se enganam em qualquer coisa enganam-se
no tempo que pouco têm para morrer —
de tal maneira se enganam nas palavras que se enganam
na cabeça que têm
que a têm pouca —
e por isso quando metem os dedos na matéria
vê-se que a matéria não estava madura ainda —
que pressa é essa? é a de já lhes fugir janeiro e estarem ainda
em setembro ou outubro —
de que lhes valem as flores da época se trocam
rosas por margaridas silvestres?
de tal maneira os aromas nas narinas dos búfalos
e as borboletas de prata pousam
apenas em nomes vagos não em corolas ferozes
nas primaveras com grandes espaços entre palavras —
mas que procuram eles? nomes?
apenas nomes entre tantos desastres?
eu não sei, eu tremo de dor apenas
perante os nomes não vistos e aspirados tanto que apeteça
morrer por um nome ou dois ou três
juntos, exactos, repetidos,
como exactamente em pleno transe louco
entre as flores dos nomes como:
dicionário folha atrás de folha,
e mesmo assim é como uma espécie de medo,
com um tremor no fundo da nossa idade
que vamos ver onde estão as pessoas que fugiram
da nossa vida, e quando foi que lhes tocámos,
ou na camisa ou no cabelo ou ao acaso nos dedos,
e que nomes eram os nomes deles entre
todos os nomes da terra,
e quando foi: se foi na descoberta
ou nos fins dos meses ou
a meio de uma tarefa leve como pentear-se,
ou ressuscitar em plena luz pela
primeira vez
ou pela última vez, logo antes de sair das trevas
para as grandes danças entre o ar e a água,
sai agora: e corta o cordão,
e entre sangue, olhos fechados, abre a boca toda,
e respira muito quase até cair bêbado ou louco
pela voz: o nome e sobretudo nome a nome
cada coisa em torno até que o alcance
a ciência dos nomes todos,
coisa a coisa da terra afinal tão pequena
que mesmo ela a domina,
no domínio dos nomes,
e então suspende tudo com medo que ali acabe com um só nome
o múltiplo mundo matricial,
o mundo das mães loucas



Herberto Helder, in Poemas Canhotos, Porto Editora, Maio de 2015, pp. 27-29.

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