sábado, 27 de junho de 2015

IMPASSE GREGO

— Vamos lá! De que maneira, meu caro companheiro, se origina a tirania? Pois é quase evidente que provém de uma alteração da democracia.
— É evidente.
— Acaso não é mais ou menos do mesmo modo que a democracia se forma a partir da oligarquia, que a tirania surge da democracia?
— Como?
— O bem que propunham, e pelo qual se estabelecia a oligarquia, era a riqueza [excessiva]. Ou não?
— Era.
— Ora foi a cobiça da riqueza e a negligência do resto, para conseguir dinheiro, que a deitou a perder.
— É verdade.
— Porventura não é a ambição daquilo que a democracia assinala como o bem supremo a causa da sua dissolução?
— Que bem é esse que dizes?
— A liberdade — respondi eu —. É o que ouvirás proclamar num Estado democrático como sendo a coisa mais bela que possui, e que, por isso, quem é livre de nascimento só nesse deve morar.
— Realmente, ouve-se muito a miúde [sic] essa palavra.
— Ora pois — prossegui — como eu ia dizendo há pouco, a ambição desse bem e a negligência do resto é que faz mudar esta forma de governo e abre caminho à necessidade da tirania?
— Como?
— Quando, ao que me parece, a um Estado democrático, com sede de liberdade, se deparam maus escanções no governo e quando se embriaga com esse vinho sem mistura para além do que convém, então põe-se a castigar os chefes, a não ser que sejam extremamente dóceis e lhe proporcionem grande liberdade, acusando-os de miseráveis e oligarcas.
— É isso que fazem, realmente.
— Àqueles que são submissos aos magistrados, insultam-nos como homens servis que de nada valem; ao passo que louvam e honram em particular e em público os governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes. Pois acaso não é forçoso que, num Estado destes, o espírito de liberdade chegue a tudo?
— Como não havia de sê-lo?
— E que se infiltre, meu amigo, nas casas particulares e que a anarquia acabe por grassar até entre os animais?
— Como havemos de dizer tal?
— É que o pai habitua-se a ser tanto como o filho e a temer os filhos, e o filho a ser tanto como o pai, e a não ter respeito nem receio dos pais, a fim de ser livre; o meteco equipara-se ao cidadão, e o cidadão ao meteco, e do mesmo modo o estrangeiro.
— É assim que acontece.
— Ainda há estes pequenos inconvenientes: num Estado assim, o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em acções; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.
— Exactamente.
— Mas o extremo excesso de liberdade, meu amigo, que aparece num Estado desses, é quando homens e mulheres comprados não são em nada menos livres do que os compradores. Mas por pouco me esquecia de dizer até que ponto vai a igualdade e liberdade nas relações das mulheres com os homens e destes com aquelas.
— Então vamos, como Ésquilo, «dizer o que nos acudiu agora mesmo aos lábios»?
— Absolutamente. Eu por mim vou falar dessa maneira. Efectivamente até que ponto os animais submetidos ao homem são mais livres aqui do que em qualquer outro sítio, é coisa que ninguém acreditaria sem o experimentar. É que as cadelas, conforme o provérbio, são como as donas e também os cavalos e burros andam pelas ruas, acostumados a uma liberdade completa e altiva, embatendo sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saiam do caminho; e tudo o mais é assim repleto de liberdade.


Platão, in A República, introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian 6.ª edição, pp. 395-398 (562a-563d), Fevereiro de 1990. Sublinhado meu.

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