quarta-feira, 19 de agosto de 2015

CONTAMINAÇÕES


Eu vi herberto uma actriz a incendiar palavras num palco quarto de hotel
as palavras dadas e as outras caladas num lugar saturado de vapor de água
e aquelas gravadas na calçada perdidas a tentar perceber como se escreve
um nome gritando um nome para a voz encurralada abandonar a cabeça

eu vi a cerzidura de cada palavra a resistir à dor à tristeza ao cansaço
de outras palavras arrancadas da sua pele na passagem dos dias
palavras que se contaminam e se perdem sem ela saber já de quem são
os rostos de mortos e vivos atropelados num caderno imaginário

eu vi um corpo curvado subitamente brilhar num campo de madressilvas
lá longe onde os amantes caminham sem rumo atrás de sombras amarelas
onde os amantes se perdem em dobras de esquinas e espelhos e olhares
os corpos traídos pela inesperada declinação da luz dos seus ombros

eu vi uns cabelos negros tornearem uma lágrima que escurece o dia
escurece a claridade de um gesto que vem de longe e se imobiliza
talvez uma borboleta negra como as que de dia nos dizem da noite
e nos fazem estancar o sangue que corre nas veias ávido de água e luz

eu vi resistir um corpo branco amarelecido por uma luz que não há
rodar na direcção da toscânia à procura da noite que nunca tem fim
porque há uma noite eterna para os que acreditam na noite sem fim
nos fios invisíveis que tecem palavras e pétalas de rosa e desejos

eu vi umas mãos delicadas a tomarem em cuidados uma menina perdida
a da memória emprestada daquele em quem as palavras são salvação
perdidos eu tu e ela em enredadas palavras demasiado frágeis para a verdade
num tempo em que já não florescem infinitos embrulhados em laços azuis

eu vi o horizonte recortado pela deusa magoada pelo amor que já não há
ou nunca houve e o silêncio a encher o quarto e a coarctar o sangue nas veias
subitamente substituído por um líquido verde que renova mitos e mundos
caminhos ladeados por anjos esquálidos e deuses de olhos vazados

eu vi a alegria quando se pensa que a tristeza são uns olhos castanhos
marejados de lágrimas ou apenas a aflorarem o lado mais difícil de dizer
do amor que já não virá das ilhas rodeadas por mar e por ilhas de ilhas
olhos castanhos a desafiarem deuses e os vazios oceânicos das distâncias

eu vi os teus olhos surpresos surpreenderem um homem sentado no sonho
das palavras que se misturam umas com as outras como contas coloridas
com imagens intermináveis semeadas de sonhos com plantas carnívoras
sonhos que invadem as noites e nos empurram para o sol que nos cega

eu vi nos teus olhos a ternura que submete os corações de touros selvagens
a frescura e a luz que inundam as terras devastadas e estéreis dos desamores
e resgatam da sombra das águas extenuadas as algas e os líquenes precisos
à renovação das palavras deslumbradas esmagadas por securas e tédios

eu vi a tua água límpida inundar os caminhos secos das nossas memórias
a seiva que limpa as veredas escuras do nosso sangue em vão derramado
o mel que suaviza as nossas gargantas secas e exaustas pelo inenarrável
o sangue rejuvenescendo que expulsa das nossas veias o lixo do passado

eu vi a tua boca proferir fórmulas mágicas "Obedece-me, meu coração. Eu
sou o teu senhor. Enquanto estiveres no meu corpo não me serás hostil."
e eu sentado no chão a mimar o canto mágico furtado ao livro dos mortos
com a esperança de acender na noite palavras e corpos e olhares novos

eu vi os teus olhos no chão à procura de sinais cifrados
de enigmas que iluminem um pensamento novo ainda que breve
uma luz que obscuramente possa desvendar as trevas do mundo
e eu atarefado a desenhar no ar criptogramas para te oferecer

eu vi aproximares-te de mim arrastando uma longa cauda de fogo frio
e as tuas mãos a trespassarem sem dor o meu corpo desabitado e dócil
os meus pensamentos desenhados pela mão esquerda de uma criança
a minha alma que teimosamente busca ainda na lama as pérolas puras

eu vi e não vi tudo o que vi ou imaginei ou não imaginei e vi-te e não te vi
sonhei-te talvez só no meu sonho vagabundo de inventar seres e sonhos
fechado no quarto de hotel palco onde tu és verdade isso é mesmo verdade
tu em estado de graça a incendiar palavras que estalam como sal queimado

eu vi uma actriz a incendiar palavras
em estado geral de graça
a ser feliz
eu vi.


Carlos Alberto Machado (n. 1954), in A Realidade Inclinada (2003). Com obras publicadas nos domínios do ensaio, teatro e ficção, reuniu a poesia, em 2009, num volume intitulado Registo civil. « A escrita de Carlos Alberto Machado é um  labor orquestral, onde baralha as fronteiras entre a poesia e a prosa, a linguagem de todos os dias e a literária. Tem um "piloto automático" que lhe desencadeia a escrita num jorro, quando é preciso, mas o trabalho no teatro ensinou-lhe que a grande liberdade e o rigor não são incompatíveis e se complementam. / Nele tudo está entrançado: os tempos mais recuados da sua vida, o amor, a morte e a escrita. O vivido em Carlos Alberto Machado é sempre um ponto de passagem para o seu direito de mentir, de construir campos de virtualidade e de possíveis. A tensão deste perpétuo jogo entre o verdadeiro e o virtual. A realidade inclinada. A ventilação da vida, a sua energia transbordante» (s/a, in Portugal, 0, 7).

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