Pouco ou nada jubiloso afirmou Mário Cesariny ter havido no século XX duas revoluções falhadas: o surrealismo e o comunismo. Aqui, por comunismo, entenda-se o regime implementado na Rússia pela chamada Revolução de Outubro - essa que a um tempo eliminou aristocratas e clérigos, plutocratas e terratenentes (a velha ordem feudal) mas também o republicanismo parlamentar de Kerenski e, sobretudo, as veleidades «utópicas» do comunitarismo autogestionário. Colectivizando a propriedade e os meios de produção numa lógica de capitalismo de Estado, o novo poder político, com e a partir da ascensão de Estaline, degenerou numa ditadura pessoal e aparelhística tenazmente repressiva quando não criminosa. Quanto ao surrealismo, de início herdeiro da subvenção Dada a que somara novos modos operatórios e novas fronteiras de linguagem pela incursão sem censura no subconsciente e na libido, os seus propósitos fundadores disparavam assim, naturalmente, para a «libertação integral do Homem» (não podendo haver revolução sem liberdade segue-se que esta, antes de ser política, é dinâmica de cada indivíduo), mas cedo foi também afunilado pela premência do combate à mancha negra dos fascismos: de aí a tentação (e o equívoco) de se colar ao Partido Comunista Francês, organicamente estalinista, para o qual o sem-limite da imaginação como força libertadora não passava de diversão de pequenos-burgueses mais ou menos histéricos e avessos ao modelo do «homem novo», proletário obediente, que ele procurava disseminar por «todo o mundo». A colagem (com esforçada reserva mental) foi de curta duração mas acabou por constituir, somada ao centralismo de capela por e à volta de Breton, factor de desagregação do movimento que se queria grupal e só assim potencialmente revolucionário. Também ele objecto de «expulsões» no seu núcleo (caso mais gritante: Antonin Artaud, se bem que mais tarde «reabilitado»), incapaz de assimilar dissidências por mais circunstanciais, espartilhado por dogmatismos antagónicos cerceadores do livre-arbítrio, o surrealismo veio afirmar-se, com maior ou menos «êxito», afinal como mais um paradigma estético, pelas intervenções daqueles seus membros com maior aptidão «artística», desde logo redutora e à mercê, seria fatal?, do canibalismo mercantil. Se uma, ou a, Revolução tem a ver com todos e com cada um, aqui o todos foi para o maneta e ficou cada um entregue ao seu destino - revolucionário talvez mas sem revolução.
De facto, tudo leva a crer que não houve comunismo algum na União Soviética quanto mais fora dela (o centralismo funcionário, onde quer que se imponha, é geneticamente anticomunista) e a revolução surrealista, ao pôr-se «ao serviço» (sic) mais da projecção de um desejo, ou de uma utopia, do que das práticas políticas já implantadas no terreno (perseguição e aniquilamento de todas as vozes socialistas discordantes da óptica dos senhores do Kremlin), estreitou o seu carácter implosivo - transformar o Homem - e explosivo - mudar o Mundo - para se entreter em esoterismos de redoma e excentricidades formais que servem hoje à maravilha a publicitários e politólogos palrantes.
Restam, claro que restam, obras literárias e plásticas genuinamente «surrealistas», restam até alguns adeptos desse movimento de sobremaneira galvanizador - como ainda haverá por aí assumidos «comunistas» que teimam a coerência possível, na menor contradição possível, entre as rodas dentadas da engrenagem capitalista, tirania global.
Contrariando parcialmente a afirmação de Mário Cesariny, apetece dizer que a revolução comunista não falhou pela simples razão de não ter sido revolução nem comunista. Já o contributo para cada um da Grande Razão surrealista vai na direcção de uma luz inextinguível - a desejada libertação integral do Homem.
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Sabe quem sabe que o denominado neo-realismo português foi expressão adoptada para iludir, se é que iludiu, os censores da Ditadura. Correcto será chamá-lo realismo socialista, esse mesmo, o emergente da filosofia, e do ditame, estalinista (oficial às ordens: Jdanov) para o campo das «artes». Teriam estas de muscular operários, soldados e camponeses, copiados do «real», a foçarem todos, formiguinhas ladinas, para a emancipação dos espoliados e ofendidos, para a construção da Grande Pátria Socialista... sediada nos gabinetes do Kremlin: lá iam pois, cantando e rindo, abençoados pelo Pai dos Povos. Os vanguardistas russos, esses que haviam aderido com fervor à (ideia da) Revolução, são silenciados, ou suicidam-se: estavam fora do baralho.
Não vá sem se dizer, opinião pessoal, que o neo-realismo português, sobretudo nas artes plásticas, fosse ainda assim subsidiário dessa hagiografia «materialista», ou dessa épica de pacotilha mais conforme à propaganda. Temos de convir que ele mais se mostra de raiz expressionista, quer nas suas deformantes ousadias estruturais quer na veemência indignada da sua exposição. Influências, aqui mais próximas, vêm todas de Cavalcanti e Portinari, de Siqueiros e Rivera. E se na literatura não raro descambou num maniqueísmo rasante (cultivado sobretudo pelos incendiários teóricos que se puseram a garatujar prosas e poemas sequer académicos porque aflitivamente toscos - «quem não sabe da arte não na estima», palavras de Camões), certo é que os seus mais probos cultores, herdeiros do realismo social de Zola, mas também de Dickens, de Gogol ou de Dostoievski, continuadores do empenhamento de romancistas como Assis Esperança, Aleixo Ribeiro, Aquilino ou Ferreira de Castro (menos exemplos à mão, que isto daria pano para mangas), puderam reequacionar ideologia com exigência estética - casos de Pereira Gomes, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio ou até mesmo o Redol dos últimos livros - e produziram obras de inegável sinceridade e recorte interventivo.
Mas o país era, e é, subdesenvolvido - falhara-lhe a revolução industrial e, com ela, o capitalismo «moderno», tão rapace como os seus predecessores porém mais urbano e cosmopolita. A Primeira República, tida por «jacobina» mas nas suas cúpulas essencialmente conservadora e, claro está, repressora dos movimentos operários, afundara-se na chicana política (mal endémico da partidarite) e na corrupção financeira que engordava alguns para deixar o Tesouro a tinir (onde é que eu já ouvi isto?), acabando por justificar, por sucessivas subtracções da esperança nela depositada, a bota «salvadora» da Ditadura. A força de trabalho, de fraca expressão operária, assentava no mundo rural - este de todo desequilibrado entre o latifúndio e as micro-áreas sem hipótese de sobrevivência económica mas também pelas monoculturas dos cereais, da vinha, do pinhal. O analfabetismo grassava a par do trabalho braçal, da insuficiência alimentar (leia-se em maiúsculas: FOME) e da mortalidade infantil. A padralhada ultramontana, passado o surto, e o susto, anticlerical, impunha a moral e os bons costumes (leia-se: o obscurantismo, a castração sexual, a submissão de rebanho assente na superstição, na idolatria e no temor do castigo eterno) e, irmã-gémea do fascismo político, estruturava-se pilar do Estado. Cereja em cima da bosta, a censura dos coronéis logrou amordaçar, com maior incidência na Imprensa - esta, aliás, quase toda conivente, ai não -, as vozes daqueles jornalistas e intelectuais não obrigatoriamente marxistas mas relapsos ao conformismo, à passividade ou à subserviência interesseira. E quanto à cultura de e para «as massas» (o bom povo que não fazia ondas e balia més e améns), temos conversado: para quem é, bacalhau basta. Bacalhau nacional, aliás da Terra Nova: artesanatos e ranchos folclóricos inventados pelo Goebels da propaganda local António Ferro, fados gemidos e cançonetas amorudas, quadros patrióticos do teatro de revista, gerifaltadas «vicentinas» para os putos da Mocidade, fitas de encher o papo a rir, enfim, tudo para comer e calar. Política do Espírito proíbe pensar. Certo que havia que alimentar os bestuntos mais ilustrados (monarquistas ainda, tipo integralistas lusitanos, ou burgueses com pedigree fascistóide); proceda-se então à lavagem recuperadora do primeiro modernismo português - Amadeo, Almada, e o Pessoa da Mensagem - rebuscando-lhe épicas patrioteiras sob a farda de vanguardismos futuristas, ou isso. Estéticas mui brumosas & dissolventes também eram apreciadas, vá lá - do telúrico e místico Pascoaes aos rapazes da presença, estes a atirar ao psicologista (leia-se: umbilical) e todos entregues à arte-pela-arte p'ra que não mais se sentissem sós. Dolce fare niente para os coronéis do lápis azul. Cultura em português suave. Feira cabisbaixa (A. O'Neill).
A geração neo-realista intentou, e para muitos conseguiu, afrontar, romper, com este estado de coisas. A ruralidade (como todo o trabalho não «qualificado») quando não pacoviamente glorificada por gente medíocre que lá ia papando os seus lagostins, enquanto penografavam, pornografavam, gestas heróicas, sempre pôde ser denunciada nos seus contrastes brutais, essa carne para canhão alheia a qualquer contrato social. Nos interstícios da vigilância censória algumas vias foram abertas - fendas na muralha - para a consciencialização dos fenómenos políticos (luta-de-classes versus exploração capitalista e repressão social) e, por que não dizê-lo?, da criação artística, ainda que difusa, camuflada ou perturbada por disfunções ideológicas que iam de braço dado, na alienação (qual «revolução proletária» num país quase sem operários e com milhares de micro-proprietários que não cediam uma gota de regueiro ou uma semente de nabo nem à lei da bala?), como os seus exactos opositores, molecularmente reaccionários e, como tal, «tradicionalistas».
A acção persistente dos intelectuais engagés encontrou eco, e difusão, em editoras, páginas culturais de jornais e revistas, folhas clandestinas (do P.C.P.), cineclubes, pequenos grupos de teatro, tertúlias de cafés tristes. Até que esta resistência, conquistando público, começou a render - se não dinheiro, «prestígio». (Notícias do bloqueio: bloqueou-se a fortaleza.) De modo que, também aqui, quem não é por nós é contra nós. Também aqui, não são toleradas dissidências ou heterodoxias, entendidas como «traições». Também aqui, olha-se de lado ou «expilsa-se» todos quantos ousem afastar-se do modelo, do cânone, da cartilha - fugas desde logo consideradas como saltos para o «outro lado» da barricada, logo, fazendo o jogo do Inimigo. O fascismo não passarava? Outro fascismo, ou algo por demais parecido (como entendê-lo, como justificá-lo sem distorções dialécticas?) se ia instalando - e se instalou, com armas e bagagens. Não: o chumbo e a cinza do presídio salazarento, do portugal dos pequeninos, não explicava tudo, não explicava nada.
Entrará aqui a «polémica» neo-realismo/surrealismo. Não sendo irrelevante que este negue o positivismo matricial daquele e solte as suas linguagens (ditas de «automatismo psíquico puro», ou seja, sem censura da mente) aos domínios próprios do «irracional», do «delírio» e das incursões oníricas que rasgavam, rasgam, novos horizontes do «real», sucede que os dissidentes de um primeiro grupo autodenominado surrealista (António Pedro em chefe-de-fila), que chegara a expor pinturices macaqueadas do Dali nos salões do Secretariado da Propaganda Nacional (depois S.N.I.) para, só após, aramar ao pingarelho «oposicionista» (aquando da candidatura do general Norton de Matos à chefatura do Estado), haviam sido pelo menos companheiros de jornada daqueles intelectuais de formação marxista que fundiam acção cultural com intervenção política. Dê-se a palavra a Cesariny: «1944-1947 - A vitória das democracias moveu profundamente a oposição portuguesa, sendo o fim da guerra assinalado por espontâneas e irreprimíveis manifestações de rua que em todo o país vitoriavam a derrota do nazi-fascismo, criando-.se o momento encessário à organização do Movimento de Unidade Democrática, que lutaria dificilmente pela legalização das várias correntes anti-salazaristas, e alimentaria esperanças que o decorrer dos acontecimentos se encarregaria de esfomear.
Mário Cesariny, Vespeira, Pedro Oom, José Leonel Martins Rodrigues e António Rodrigues aderem ao partido marxista-stalinista português, do qual aceitam a práxis e a responsabildiade. José Leonel Martins Rodrigues, a contas com a polícia, perde a razão. Mário Cesariny pronuncia conferências no mais populoso núcleo proletário do país (Barreiro) e na cidade de Évora, aqui com Júlio Pomar, Lima de Freitas e Mário Ruivo. No jornal A Tarde, no Porot, estes e ainda Fernando José Francisco, em página semanal coordenada por Júlio Pomar, escrevem artigos totalmente politizados.» (in «Para uma cronologia do surrealismo em português», as mãos na água a cabeça no mar, ed. Assírio e Alvim.)
Quanto pois a antifascismos, nada de mais claro. E quanto a militâncias na poética neo-realista, aí temos Pedro Oom (o mais pulsionado dos «ortodoxos» surrealistas em termos de rigor ideológico) a publicar versos «puros e duros» em publicações como a Seara Nova, O Diabo (da primeira série) ou o Sol Nascente, tendo deixado inédito, por corte total e definitivo, o volume Escadaria do Negrume, título que já de si era todo um programa.
Mas tal interessou pouco, ou mesmo nada, aos instalados na corrente monopolizadora das «ideias progressistas» e das estruturas que as divulgavam. A «desobediência civil» dos surrealistas teria de ser diabolizada para depois ser remetida, como foi, ao silêncio... dos culpados, ao gueto dos marginais.
Os rumos estavam traçados e a ruptura inaugurada.
Vítor Silva Tavares, in PREC - Põe, Rapa, Empurra, Cai, propriedade da Abril em Maio, número zero, Novembro de 2005.
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