quarta-feira, 23 de setembro de 2015

CINCO "FÁBULAS"


   Estes cinco textos, numerados pelo punho de Svevo, constituem o elemento central de um dossier por ele organizado, ao que se supõe, 30 anos depois, intitulado "Fábulas". No entanto, não ordenou os elementos desse dossier, sendo evidente que não considerava o conjunto pronto para publicação, mas apenas um projecto em curso.
   A menção irónica no fim da 5.ª fábula ao filósofo Herbert Spencer (1820-1903), partidário do evolucionismo radical em todos os domínios (economia, sociedade, moral), fornece provavelmente a chave para compreender a profunda coerência destes cinco textos "pessimistas" que mostram a influência de Darwin sobre o pensamento de Svevo.


1

   Um professor de zoologia explicava aos alunos como é que o pombo que dá cambalhotas descende do pombo bravo. Dizia ele que, durante muitos séculos, a fantasia do criador havia elegido para a reprodução indivíduos que possuíam essa insólita qualidade. Deste modo pôde vir ao mundo o estranho animal, assanhado a dar cambalhotas a ponto de se matar.
   "Oh! Que infâmia!" disse um dos alunos.
   "Não é infâmia, observou o professor. É a vida." A selecção entre os humanos, também ela, é hoje em dia feita de tal maneira que não são os melhores quem sobrevive, mas os que melhor sabem cabriolar. Se as coisas continuarem assim, sabe-se lá que louco animal resultará daí.


2

   Um malfeitor, a quem a má natureza havia impelido a assassinar um homem indefeso, tomou consciência da enormidade do seu crime; arrependeu-se e foi rezar a uma igreja.
   Foi distraído da sua fervorosa oração por um pregador que exclamava do alto do púlpito: "Regozijai-vos com a existência dos fracos e dos pobres, pois, ao praticar gestos de caridade para com eles, podeis alcançar o reino dos céus."
   "Oh! mentiroso!" pensou o pecador. "Os pobres e os fracos causam a nossa desgraça. Se a minha vítima não fosse fraca, ao defender-se poderia ter-me impedido de a matar e de assim perder a paz da minha alma."


3

   O Senhor Deus fez-se socialista. Aboliu o inferno e o purgatório e pôr toda a gente no paraíso, em pé de igualdade. Aí gozava-se o bem-estar de uma beatitude eterna.
   Num dado momento morreu um Creso: ficou estupefacto por ser acolhido no paraíso. Mas logo se habituou à sua nova existência e bem rapidamente começou até a queixar-se.
   "O que é que te aflige?" perguntou o Senhor, colérico.
   "Ah, Senhor! Manda-me para a terra! Aqui não é o verdadeiro paraíso; aqui não se vê ninguém sofrer."


4

   Um herói salvou uma fada de um perigo grave. Reconhecida, a fada disse-lhe: "Pede-me o que quiseres, obtê-lo-ás."
   Sem hesitar, o herói respondeu: "Dá-me glória!"
   A fada ofereceu-lhe ouro: "Com isto ser-te-á fácil alcançá-la."
   O herói reflectiu, e depois disse: "Pois bem, dá-me amor."
   A fada repetiu o mesmo gesto: "Isto dar-te-á quanto amor quiseres.
   - Se glória e amor são ouro, declarou o herói, não quero nem glória nem amor. A felicidade tranquila me bastará, a vida contemplativa. Garante-ma.
   - És mesmo louco! exclamou a fada, sorrindo. Toma este ouro, pois ele é necessário até para a simples contemplação."


5

   Sem que de modo algum fosse culpa sua, um homem perdeu todos os seus haveres e ficou na mais cruel das indigências. De idade já bastante avançada, não tinha a menor esperança de algum dia voltar a levantar a cabeça. Todavia continuou vivo. Muitas vezes desejou morrer, mas apesar de tudo nunca o desespero foi suficiente para armar a mão contra si próprio.
   Um dia, encontrou por acaso Herbert Spencer que lhe explicou porque é que o seu infortúnio era consequência evidente da incapacidade própria, e por que razão não merecia compaixão nem ajuda, pois esta, a ser-lhe dada, teria corrompido a lei social, que exige a eliminação do vencido.
   Então, à laia de conclusão, o pobre homem matou-se imediatamente.

Trieste, Dezembro de 1897


Italo Svevo, Fábulas, tradução de Célia Henriques, capa e desenhos de André Ruivo, composto e paginado por Olímpio Ferreira, & etc, Dezembro de 2001, pp. 15-25.

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