sábado, 5 de setembro de 2015

I.N.R.I.


Iron Nails Ran In
James Joyce

para o João Luís Barreto Guimarães


Nunca nos olhas de frente
mas sempre de rosto pousado no chão,
como se temesses dar a ler,
ó casta donzela,
a inimiga verdade nos olhos,
culpando os cervos pelas águas
que deles correm inquinadas.

Talvez pretendas evitar o céu
de tão cansado,
ou não mais queiras nascer
em corações que esperam
alguma coisa que não pode vir do seu lado,
esse desde sempre ocupado e aquecido pelo sol,
também ele mortal.

Os olhos postos em ti
vimos sempre mais que barro, pedra,
madeira, ou marfim.
Beijámos-te os pés sob chuvas de setas,
no inferno verdejante das selvas
onde malignas febres incubavam,
e descendo velozes das árvores,
furtivas serpentes semelhavam
furtivos, venenosos pensamentos.

Chegámos-te fogo ao coração,
demos-te espinhos para o cabelo,
prendemos-te à cabeceira da cama,
ou acima do quadro, na escola primária.
Mas também as crianças espetam dedos nas silvas
quando procuram amoras,
também elas mordem o pó liso do verão
quando caem das bicicletas,
e trespassadas morrem nas passadeiras
com sinal verde,
ou despedaçadas por bombas-relógio
na Ossétia do Norte.

Aqui, a Ocidente, padecemos de um tédio sem cura,
(pelo menos desde Baudelaire)
ali, a Sul,
de fome, catanas, e diarreias.
Acolá a Oriente da vida madrassa,
das ejaculações do profeta,
ou da lei de Talião.
Que grande e colectiva culpa virias hoje expiar?
Que revelação? Que verdade a comunicar?
Como poderias estar no meio de nós
e passar despercebido,
tantas são as câmaras de vigilância,
tantas as irmãs e os irmãos
a exibir a estúpida da vida?

Pois não decifrámos a matéria
- tudo era, parece, feito de gás?
Não sabemos criar barro a partir do barro,
ovelha a partir de ovelha?
Longe não vem o dia, acredita,
nem longe o subsídio,
que permitirá recriar num laboratório
a grande explosão com que tudo
começou, embora digam agora
que tudo não foi obra de uma só
(podendo dar-se o caso de haver
outros universos para salvar,
outros mundos para converter).

Isto se o cosmos não for apenas informação,
se o mundo existir de facto, e não passar,
como os poetas da Física disseram há tempos,
enquanto merendavam nas margens outonais
do lago de Constança,
de uma colectiva e gloriosa alucinação,
uma pintura das coisas e não
as próprias coisas,
um modelo
de representação.

A matéria, asseveram outros,
não é feita de partículas
mas de cordas a vibrar num imenso
e multi-dimensional harpejo cósmico.
Só pela música, bem vês,
pela sacra, ascendente,
curativa música,
é possível preencher o vazio de ti
ou dar um rosto ao que em ti amamos.

Nunca foi preciso, de resto,
que morresses por nós,
pois sempre fomos solidários
e voluntariosos
no morrer:
por cada um que vive,
troca de carro, vai de férias
ou foge aos impostos,
há sempre milhares
dispostos a deixar de existir.

Deixa-nos pois catedrais e capelas
com seus húmidos recantos
e húmidas sombras
onde amar o silêncio a sombra o nada
e vai-te embora,
regressa ao deserto.

Talvez um dia possamos ir de novo buscar-te,
desaprendida a vida, reaprendido o silêncio,
reencontradas as palavras com que resgatar-te
às trevas e à solidão.


Rui Lage (n. 1975), in Revólver (2006). Começou a publicar já no séc. XXI, na ressaca de polémicas que opunham os poetas aparecidos no final do século XX. A poesia de Rui Lage afirmou-se pelo uso de imagens fortalecidas por um domínio rítmico que tem na sua origem um depurado labor verbal. Estamos num campo afectivo que seduz pela forma como arrisca na irredutibilidade da memória a uma mera descrição do passado, fazendo tema não apenas das circunstâncias subjectivas do sujeito poético, mas também de uma leitura do mundo que ao mesmo tempo influi e resulta dessas mesmas circunstâncias. Cruzando ironia com reflexão, esta poesia inventaria os fantasmas do quotidiano, acusa o absurdo existencial e não procura fugir à condição política daquele que se encontra imerso no mundo. É, por isso, uma poesia afectada pela contemporaneidade, mas capaz de superar esse seu tempo com a universalidade da metáfora.