quarta-feira, 23 de setembro de 2015

"NÃO PRECISO DE BENGALAS"

Queres fazer um documentário sobre Mário Cesariny? Fala com Vítor Silva Tavares. Vais fazer um documentário sobre Luiz Pacheco? Tens de ouvir o Vítor Silva Tavares. Precisas de um depoimento sobre Herberto Helder? Pede ao Vítor Silva Tavares. Andas a preparar a biografia do João César Monteiro? Entrevista o Vítor Silva Tavares. Recentemente, ao assistir a um documentário sobre Ruy Belo que passava na RTP2, lá estava ele, mais uma vez, o inevitável Vítor Silva Tavares. A questão agora é com quem falar se quisermos falar sobre Vítor Silva Tavares? Alberto Pimenta e Rui Caeiro foram cúmplices muito próximos. Paulo da Costa Domingos, que coordenou a edição de & etc – Uma Editora no Subterrâneo (Letra Livre, Novembro de 2013), extraordinário livro sobre “a mais singular editora portuguesa”, é outra fonte inevitável.
Lembro-me dele também por causa de ARA, uma publicação rara onde se sacrificaram textos de Rui Baião, Vítor Silva Tavares e Paulo da Costa Domingos. A edição é Frenesi, embora a relação de proximidade com a casa & etc seja assumida: «este décimo sexto volume pode ser adquirido através da casa & etc rua da emenda 30, subterrâneo 3, 1200 lisboa. Preço de capa 150$00»:
(…)
Todos os sábados, no baile dos bombeiros, desaparecem pernas, diz-se que trituradas pelo crocodilo americano. A bruxa desmente, diplomada em parapsicologia e macrobiótica. Nos jardins infantis ninhos de larvas artilham-se para a militância: é a bomba mística a espalhar confetti. Nem um esgar na câmara de vácuo. O laboratório incha como a rã da fábula, as máquinas registadoras vêm-se».
(…)
Estávamos em 1984, mal suspeitaríamos o quão valiosíssima viria a ser esta pequena publicação. Desde logo por assinalar uma das raras aparições de VST enquanto autor, raridade explicada posteriormente por ter o homem mais que fazer: «Tenho mais que fazer porque vivo intensamente a noite, os meus amores, vivo intensamente os meus amigos. Para mim, isso é prioritário. A literatura vem depois». E veio, muitas vezes emocionalmente misturada com esse valor superior da amizade. É o caso de Tanto Fogo e Tanto Frio (& etc., 2008) homenagem sentida à colaboração gráfica do saudoso Olímpio Ferreira. Dá-se o caricato de na loja on-line Wook Alberto Pimenta ter sido convertido em Albino, um lapso cuja graça não morre solteira. Ainda ontem, no jornal on-line Observador atribuía-se a Artaud a autoria de A Cona de Irene.



Equívocos destes temperavam o discurso de VST sempre que soltava mais uma história sobre X, Y, Z. O caricato está entre nós como uma espécie de guia, prova-nos o quão ridícula e saborosa é a vida. Veja-se isto. Revista LER – Livros & Leitores, n.º 119, Dezembro de 2012. Sophia, agora publicada pela Porto Editora, na capa. As restantes chamadas são um retrato fiel da parvoeira literária: Philip Roth diz que não escreve mais, José Luís Peixoto conta segredos da Coreia do Norte, a parangona do inédito de Sophia faz salivar o leitor consumista. Na contracapa, um autor recém-adquirido pela casa faz o frete. A imagem de Valter Hugo Mãe a segurar a caixinha Book Gift, onde podemos ler os nomes de José Luís Peixoto, Luís Miguel Rocha, Fernando Pessoa, Dan Brown, Danielle Steel, Paulo Coelho, Luís Sepúlveda, Kafka e Don Delillo é todo um programa acerca da estupidificação do mundo. Uma caixinha onde cabe tudo como se não existisse diferença alguma entre o que se mete lá para dentro, o livro convertido em caldo Knorr. No miolo da revista, uma entrevista de Carlos Vaz Marques a Vítor Silva Tavares ilustrada pelas fotografias de Pedro Loureiro. Vale a pena recordar um breve trecho:
Qual foi o livro mais importante que editou, aquele a que atribui mais valor?
Isso é irrespondível. Não faço a mínima ideia. Nunca, ao publicar o livro A ou B… Não me passam coisas dessas pela cabeça.
A posteriori, há certamente livros que gostou mais de editar.
Tocou num ponto que é esse a posteriori. Ora, eu não sei o que é isso do a posteriori. Ora, eu não sei o que é isso do a posteriori e vou-lhe já dizer porquê: eu não olho a vida com o olho do cu. Para trás, eu não vejo nada, pá.
Talvez seja difícil compreender alguém que não olhe hoje a vida com o olho do cu, de tão induzidos e impelidos que somos a fazê-lo. Por isso era suposto que o editor tivesse as suas preferências, tal como é suposto que no fim de cada ano se escolham os livros do ano, e é suposto comprarmos todos essa estupenda novidade que aparece em todas as capas de jornais e revistas, e é suposto sermos todos amigos uns dos outros no Facebook, e é suposto votarmos de quatro em quatro anos, e é suposto termos um emprego que dê para pagar contas da água, da luz, do gás, da gasolina, da Internet e da puta que os pariu. Vivemos num mundo de suposições, à espera de que tenhamos todos vidas, no mínimo, muito parecidas e indiferenciadas. É suposto sermos todos o mais parecidos possível uns com os outros. Porque não é suposto vivermos de forma diferente. É suposto obedecer aos padrões, respeitar as teses, fazer como se costuma fazer, o hábito, a tradição, o comum, o costume. O que torna especiais então certas pessoas? Talvez o inusitado das suas vidas, o improviso, a estupenda alegria dos gestos livres, das acções esquisitas e insólitas. Ou seja, nelas haver muito pouco do costume. Marginais? Alternativos? Simplesmente paralelos:


Não tem automóvel.
Não.
Não há nenhum computador nesta sala.
Não. Há uma frasezinha do Marx, acho que ainda não é proibido citá-lo, que diz: «…a cada um segundo a sua necessidade.»
«De cada um segundo a sua possibilidade…»
Nem mais. Aí, na batatolina! Eu não me limito a fazer citações, está a ver? Ou bem que eu intestino qualquer coisa que tenho na minha cabeça, podem ser até versos de canção, e então torno-os meus. E portanto não vou botar ciência: como disse este, como disse aquele. Não sou o Ramalho Eanes, não sou o Cavaco, não é Kierkegaard para aqui e para ali, não preciso de bengalas. 

1 comentário:

Luiz Santos-Roza disse...

Obrigado por escrever isto.