Pretender reduzir a obra de Slavoj Žižek ao “tom
provocante, confuso e bizarro” que, sem dúvida, caracteriza a espaços o seu
trabalho, é, no mínimo, uma atitude simplista que nada abona em favor dos críticos
do filósofo esloveno. Problemas no Paraíso - O Comunismo depois do Fim da
História (Bertrand Editora, Setembro de 2015) insere-se num conjunto de obras onde
mais do que repensar o comunismo, ou tão-somente elaborar a crítica do
capitalismo, Žižek perspectiva o mundo a partir de uma problematização dos
pilares que sustentam uma ordem de pensamento dependente de postulados improváveis.
A recorrência a exemplos extravagantes, colhidos ora na cultura popular, ora na
tradição, servem para fundamentar declarações polémicas justificadas pelo
ambiente absurdo, mesmo fantasioso, que deforma a realidade actual. Pode
afirmar que «Não são os grandes génios criativos que estão a ajudar as
preguiçosas pessoas comuns mas os contribuintes comuns que estão a ajudar os «génios
criativos» falhados» (p. 242); e concluir, breves páginas depois, que «Aquilo
de que precisamos hoje, nesta situação, é então de uma Thatcher da esquerda: um
dirigente que repetisse o ato de Thatcher na direção oposta, transformando todo
o campo de pressupostos partilhados pela elite política atual de todas as
principais orientações» (p. 247), sem que ambas as afirmações se entrechoquem. Afinal,
o que é Slavoj Žižek senão um génio criativo?
Os textos deste livro, humildemente dedicado às prostitutas
do Café Photo em São Paulo (por certo, vítimas do capitalismo selvagem),
tiveram na sua origem uma série de palestras dadas em Seul, em Outubro de 2013.
Que lugar mais pertinente para falar de comunismo e arquitectar uma crítica do
capitalismo do que a Coreia do Sul? Tomando como princípio a “crise económica
devastadora” que o capitalismo global tem vindo a oferecer ao mundo nos últimos
anos, Žižek cumpre o seu papel enquanto filósofo ao acusar a “era de
indiferença cínica” e o “conformismo cínico” (parece uma contradição nos
termos) promovido pela dinâmica capitalista, a qual se alimenta de um discurso hipócrita
acerca dos méritos de uma democracia representativa onde «Agimos como se
fossemos livres e decidíssemos em liberdade, aceitando ou não, silenciosamente,
mas inclusivamente exigindo que uma ordem invisível (inscrita na própria forma
da nossa liberdade de expressão) nos diga o que fazer e o que pensar. (…) Há,
assim, um aspeto mínimo de gentileza nas «eleições livres»: aqueles que estão
no poder fingem gentilmente que não o têm realmente nas mãos e pedem-nos para
decidir livremente se lhes queremos dar o poder — de um modo que espelha a lógica
da oferta-a-ser-recusada» (p. 238). Esta gentileza é o sustentáculo da grande
ilusão democrática, desfeita quando o sistema, ao sentir-se ameaçado pelo exercício
da liberdade dos seus agentes, contradiz os seus próprios pressupostos (casos Snowden,
Wikileaks…) ao travar a luta pela verdade.
No fundo, o que torna possível a democracia é o culto e a
preservação da mentira (a “mentira útil”, como já dizia Platão), é a ilusão de
que está tudo sob controle, uma espécie de credo que afasta das ruas os
leprosos para que nos convençamos de que a lepra não existe. Esta dimensão
absurda do Real surge bem enquadrada no extenso anedotário que serve de
fundamento a uma reflexão sobre os problemas no “paraíso capitalista”.
Primeira:
Há uma maravilhosa anedota francesa sobre um snobe inglês em
visita a Paris que finge compreender francês. Vai a um restaurante caro no
Quartier Latin e quando o empregado lhe pergunta «Hors d’oeuvre?», ele
responde:
— Não, não estou desempregado! Ganho o suficiente para poder
pagar uma refeição neste sítio! Tem alguma sugestão de entrada?
O empregado sugere-lhe presunto cru:
— Du jambon cru?
O snobe responde:
— Não, tenho a impressão de que comi presunto da última vez
que aqui estive. Mas tudo bem, pode ser isso outra vez. E o prato principal?
— Un
faux-filet, peut-être?
O snobe rebenta de raiva:
— Traga-me um a sério, já lhe disse que tenho dinheiro! E
depressa, se faz favor!
O empregado tranquiliza-o:
— J’ai hâte de vous servir!
Ao que o snobe responde imediatamente:
— Por que motivo odeia servir-me? Deixo-lhe uma boa gorjeta!
O snobe percebe finalmente que os seus conhecimentos de
francês são limitados; decide, para limpar a reputação e mostrar que é um homem
com cultura, dar as boas-noites ao empregado, quando sair tarde do restaurante,
em latim, uma vez que o restaurante se situa no Quartier Latin:
— Nota bene!...
A expressão latina é recuperada no apêndice que encerra o
livro: «Os dois significados de nota bene — «tome especial atenção, note bem»
(o correto) e «boa noite» (o falso, baseado na confusão de «nota» com «noite») —
demonstram extraordinariamente bem o destino da atual crítica da ideologia. Na
nossa era de indiferença cínica, a mensagem da crítica da ideologia é, «Toma
atenção ao que te estou a dizer, acorda para a tua realidade!», enquanto a
resposta comum é: «És aborrecido, dás-me sono, por isso, boa noite!» Que fazer
para quebrar este torpor dogmático, como passar do «boa noite» para «estou a
ouvir o que me estás a dizer?» (p. 257) É esta a grande questão filosófica do
livro, apontando-se como resposta o horizonte comunista como o único «a partir
do qual é possível não só julgar como analisar adequadamente o que se passa na
atualidade» (p. 43). Esta recuperação da ideologia num “tempo alegadamente pós-ideológico”
tem, pelo menos, o mérito de confrontar factos com leituras políticas genéricas.
A incapacidade das elites dirigentes actuais como que impõe uma desconfiança da
democracia, perigosamente sujeita à alienação de um público desprovido de razão
crítica. A desconfiança da democracia redunda, deste modo, numa perversa desconfiança
do público, ainda que seja no interior deste que podemos esperar uma reinvenção
da democracia. Fora dos jogos de poder, dentro de um reforçado debate ideológico
pela emancipação radical dos povos. Para tal, há que aceitar desde logo um
paradoxo evidente: o tantas vezes apontado falhanço do comunismo resultou no
que está à vista de todos, isto é, no falhanço do capitalismo global. A história
não acabou, simplesmente parece não ter sequer começado. Os equívocos no diálogo
entre o snobe inglês e o empregado francês fazem o resto, são uma espécie de
motor da História.
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