segurava um livro grande que nunca tinha aberto
e caminhava por entre os arbustos mais pequenos
que feriam as pernas e rasgavam a roupa;
do lado de lá do rio existiam animais com forma
de mulher e de criança. choravam, gritavam,
riam-se algumas vezes, entravam nas ruínas das casas,
contorciam-se do lado de dentro das janelas.
eram sobretudo sombras nas paredes. demoravam-se
muito tempo num ruído de interferências.
olhava esses animais gastos que via nas margens
contrárias, alguns lavando roupa junto ao rio,
caminhava sempre, segurando um livro enorme,
fechado, que não sabia do que falava,
para que servia. o corpo ferido dos arbustos,
as palavras feridas da solidão, todas as outras coisas
cabiam entre as mãos e pesavam muito sobre a capa
do livro, gasto de nunca ter sido aberto,
incendiado, inconcreto - absurdo na sua realidade.
havia luzes ao fundo, sempre luzes ao fundo,
e as crianças, não os animais, as crianças, cantavam
músicas tristes pelo caminho, correndo entre as árvores,
descobrindo no sangue uns dos outros terríveis segredos
físicos, visíveis, rebolando pelas encostas, contando estrelas,
palavras. e nada dessas coisas estava antiga. nem gasta.
nem inconcreta. entre as árvores a única aparição
era essa imagem que segurava um livro enorme.
era essa figura, esse fantasma irrelevante que trazia notícias
dos profetas apagados antes de tempo.
Pedro Tiago (n. 1983), in O Comportamento das Paisagens (2011). O livro de estreia de Pedro Tiago ficou marcado por hesitações
entre um discurso de pendor narrativo e o poema curto, geralmente evocatório,
onde o mundo rural e certo enquadramento urbano se confrontam numa espécie de memória
íntima do tempo e das metamorfoses por este exercidas na paisagem. Referências bíblicas
misturam-se com apontamentos do dia-a-dia, abrindo caminho para uma “mitologia
do quotidiano” pautada pelo absurdo existencial e por uma noção do corpo
enquanto suporte onde o tempo inscreve, rasura, esculpe, de forma mais ou menos
violenta, os seus dados. Daí que as paisagens assumam comportamentos, pois a
paisagem não resulta tanto de uma percepção do corpo sobre o que lhe é externo como
parece resultar da pressão exercida pelo exterior sobre o modo do corpo se
auto-percepcionar.
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