O papão vai-te comer. É assim na infância, persegue-nos
pela adolescência e entra na vida adulta. Até que um dia come mesmo. Chama-se
estupidez, ignorância, burrice. A ausência de um esforço mínimo para a
compreensão do outro, sendo que pelo outro podemos entender o mundo à nossa
volta, é uma chaga que não se cura com o medicamento que tínhamos mais à mão,
ou seja, uma imprensa livre. Esta suposta imprensa livre, cativa das tiragens e
das audiências, cativa de investimentos interesseiros e promíscuas relações com o
poder, acaba por inflamar ainda mais a chaga da burrice, da estupidez e da
ignorância com pseudo-notícias, tomadas de posição sensacionalistas, o sufoco
da opinião subjectiva, imagens, muitas imagens, alienadas de conteúdo
esclarecedor. O cidadão comum tem, deste modo, uma dificuldade acrescida. Se
quiser conhecer um pouco mais do seu mundo terá que exercer um grau de
abstracção para o qual não está minimamente preparado porque, desde logo, tem
vindo a ser formatado para meras competências técnicas que têm muito pouco que
ver com pensar, duvidar, criticar. O sucesso de tablóides como o Correio da
Manhã, e a consequente tabloidização da imprensa generalizada, são o exemplo
mais escabroso de uma total ausência de espírito crítico que leva a fazer
notícia e alarde de um pobre estafeta que anda a entregar pizzas. Mas isto é
apenas a ponta do iceberg mediático contra o qual o Titanic civilizacional
colidiu. Agora é vê-lo afundar-se lentamente, de preferência à distância (tanto
quanto possível).
Quando cheguei aos weblogs, em 2003, discutia-se a invasão do
Iraque. Uns contra, outros a favor, esgrimiam-se argumentos com maior ou menor
convicção. Havia também aqueles para quem interpretar um argumento era como
fazer contas de subtrair. São sempre muitos, inumeráveis, esses tais. Para
esses, dizer que a invasão era não só um erro como até uma ingerência
inaceitável significava simpatizar com a ditadura de Saddam. Mas estar contra
aquela guerra não significava estar a favor de Saddam. Nestas temáticas, a
matemática é nula. Do mesmo modo, estar contra os métodos da ditadura de Assad
não pode significar estar a favor dos métodos dos radicais do Estado Islâmico
que o combatem. Não há apenas dois rostos numa mesma questão, as variantes e as
nuances devem ser pesadas e ponderadas e pensadas. Infelizmente, quase nunca o
são. Em política a matemática apenas serve para contar os mortos. E às vezes
nem para isso.
Há tempos, podia ler-se num artigo sobre o financiamento do Estado
Islâmico que o dinheiro vinha da exploração do petróleo iraquiano, vendido no
mercado negro por meio da Turquia e da Síria. Mais: “o apoio da Arábia Saudita
e dos países do Golfo aos sunitas para combater xiitas e seus aliados está na
raiz do sucesso económico do EI”. Se cruzarmos estas informações (colhidas
aqui) com outras, tais como “Alemanha admite ter exportado químicos para a Síria” ou “O tráfico de armas aumenta e a guerra é um óptimo negócio” ou “Alemanha duplica exportações de armas de guerra”, entre muitas outras, ficamos com a sensação
do sabor amargo que deverão ter os rebuçados oferecidos pelos alemães aos
refugiados recentemente chegados ao regime da Democracia Cristã merkeliana.
Harold
Pinter denunciou parte desta hipocrisia no seu discurso aquando da entrega do
Nobel da Literatura. O texto, claro, objectivo, magnífico, foi publicado entre
nós com o título sintomático A Teia. Escrevi sobre ele aqui. Pinter denunciava,
então, as mentiras que serviram de justificação para a invasão do Iraque. A
pergunta é: os senhores da fotografia abaixo já foram julgados pelas suas
mentiras?
Quantas vítimas directas e indirectas aquela putativa guerra ao terrorismo causou? O que
estamos a viver hoje não será consequência do desmantelamento do Iraque?
Colocar esta questão faz de mim um saudosista de Saddam Hussein? O mundo dá
muitas voltas e ainda há não muito tempo a al-Qaeda e o seu heróico mártir
Osama eram desta forma propagandística apresentados ao mundo civilizado do bom
Ocidente:
Sem que saibamos bem porquê, depois o herói Bin Laden converteu-se
num mauzão, num terrorista, num homem a abater. Foi por isso que os nossos
exércitos se infiltraram no Afeganistão e no Iraque (quando digo nossos é mesmo
nossos que pretendo dizer) sem que nos tenhamos preocupado por aí além com tamanhas
infiltrações. Imaginem os portugueses, os britânicos, os espanhóis, os americanos,
começarem a preocupar-se com a infiltração dos seus militares em países estrangeiros
e, por uma qualquer inversão da lógica que domina as coisas, começarem a temer
em vez da vinda a ida do papão. Nesse dia, deixaríamos de pensar que o papão
vem aí e passaríamos a pensar que o papão vai acolá. Talvez fosse uma forma
mais justa de pensar, tendo em conta os antecedentes, isto é, a dizimação dos
índios nas américas, o tráfico escravo de negros da África para as américas, o
holocausto nazi, etc. e tal. Daí que não me preocupe minimamente se entre os
refugiados sírios, e, já agora, entre os restantes espalhados pelo mundo, estão
terríveis terroristas como durante o período colonial eram os nossos bons portugueses
que fugiam ao destacamento para África. Não me preocupa tanto quanto me
preocupa saber que nós próprios continuamos a alimentar esses terroristas, seja
aquém, seja além fronteiras, com a tal estupidez, a tal ignorância e a tal
burrice que depois se espanta com curiosidades tais como as destes livros.
Ainda não os li, mas julgo provarem que não é necessário recebermos famílias em fuga para termos entre nós terríveis jiadistas. Por ora, mantenho-me focado no mais recente Žižek, onde, a
páginas 164, volto a ser incomodado pelas perguntas certas:
Temos um ditador maléfico que utiliza gás venenoso contra
o seu próprio povo, mas quem se opõe a este regime? Parece que o que quer que
sobrasse da resistência democrática secular está, agora, mais ou menos
submergido na confusão de grupos fundamentalistas islâmicos apoiados pela Turquia
e pela Arábia Saudita, com uma forte presença da al-Qaeda nos bastidores. (Lembremo-nos
de que, há um ano, um alto clérico saudita exortou as raparigas islâmicas a
irem para a Síria e apoiarem os rebeldes ao oferecerem-se para ser violadas em
grupo, uma vez que os rebeldes experimentavam falta de satisfação sexual!)
Ou seja, enquanto a Europa lucrava com a exportação de
armamento, as mãos de uma criança rolavam nas ruas sangrentas do mundo. Que fique, para registo
final, esta bela e expressiva fotografia no sítio do Governo de Portugal. Portugueses,
cuidado com os refugiados. A mesa está posta:
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