Depois de A Ilha de Sukkwan (Edições Ahab, Junho de 2011) e
de A Ilha de Caribou (idem, Abril de 2012), David Vann (n. 1966) regressa às
livrarias portuguesas com Aquário (Relógio D’Água, Outubro de 2015). De
lamentar a tradução, de José Lima, seguindo o novo Acordo Ortográfico, não
porque seja má, mas por se tornar risível, a espaços, por culpa de um acordo
criminoso. A diferença entre pára e para é só uma das tragédias mais gritantes, tornando por
vezes a leitura deveras desconfortável. Para leitores que dominem o inglês,
fique a nota: preferível será, creio, apostar na versão original. Os restantes,
façam o esforço (se for caso disso). O livro de Vann bem o merece, como tinha
ficado patente nas obras anteriores. Tanto a palavra ilha como a palavra aquário
remetem para uma noção de isolamento, não sendo alheia a ambas, de igual modo,
um certo sentimento protector. Mais no caso da palavra aquário do que na palavra
ilha, é certo. Ainda assim, esta protecção advém do isolamento, ou seja, de
certo distanciamento dos elementos agressores. Mas não é bem assim. Os dramas
familiares encenados por David Vann nos seus romances encarregam-se de nos
provar o contrário. O que haveria de insular e de protector na família,
transforma-se, por via dos desencontros, dos desentendimentos, dos traumas, dos
segredos, dos recalcamentos, das amarguras caladas, num palco aterrador de
verdades eruptivas. As ilhas de David Vann não são locais idílicos para os
quais levaríamos os objectos da nossa predilecção, são condições existenciais
dentro das quais se forma a nossa personalidade. De modo similar, o aquário em
Seattle que a jovem Caitlin visita diariamente não é apenas e tão-somente um
reservatório de espécies protegidas. É, por outro lado, o microcosmo a partir
do qual a existência pode ser entendida por comparação com as características
das espécies ali preservadas. Como se toda a nossa vida fosse também uma luta
pela preservação do que consideramos merecer tal esforço. A personagem central
de Aquário é uma jovem de doze anos prestes a entrar na vida adulta pela
via sempre dolorosa da verdade, uma via da qual os homens fogem por nela ser
terrível confrontarem-se com as suas debilidades e contradições. Sobretudo com
os seus medos, encarnados aqui na figura de um avô ausente que pretende
reabilitar-se enquanto homem de família, através da neta, após dezanove anos de
abandono. Remorso, raiva, ódio, rancor e amargura, misturam-se no coração da mãe
de Caitlin, mãe solteira, estivadora, a fazer pela vida num meio inóspito e
agressivo. Quem pode julgar quem neste aquário, onde cada espécie se afirma
pelas suas características únicas e singulares, onde cada espécie parece em
contradição com o mundo ao mesmo tempo que o define? O dispositivo encontrado
por David Vann é magnífico, ele coloca-se e coloca-nos perante as suas
personagens como a jovem Caitlin perante os peixes: «O problema com o aquário
era que não podíamos ir para o pé deles» (p. 13). Em termos narrativos acaba
por não haver problema algum, este distanciamento permite ao autor não
transformar as emoções e os afectos num espectáculo degradante de
sentimentalidade gratuita, mesmo quando coloca na boca da mãe de Caitlin a essência
da realidade: «Bem-vinda ao mundo dos adultos, não tarda muito. Eu trabalho
para poder trabalhar mais. Procuro não desejar nada para talvez conseguir
alguma coisa. Passo fome para poder ser menos e mais. Tento ser livre para poder
estar só. E nada disso faz sentido» (p. 25). O anúncio é desesperante, coloca
no leitor as expectativas que desfazem a personagem. “Não tarda muito”, tanto nós
como Caitlin ficaremos a saber, de facto, onde estão as brechas do refúgio, por
que fenda entram os monstros que nos aguçam medos e temores. Seria
contraproducente fazer aqui revelações sobre uma história que tem tanto para
contar, mas não é displicente assinalar, mais uma vez, a importância dos
contrastes na escrita de David Vann, sobretudo quando usa a dimensão mais
agreste da natureza para sublevar os comportamentos humanos. Entre o homem e a
floresta já não há apenas uma natural relação de continuidade, é como se o
homem tivesse sido amputado dessa sua condição selvagem e, por consequência, se
tivesse transformado num peixinho de aquário em busca de uma saída para o vasto
Oceano. Esse mesmo Oceano onde a maior revelação é a descoberta de um «caminho
para o perdão» (p. 219), o perdão que permitirá reunir o que foi afastado pela
discórdia. Aquário é um excelente romance sobre a entrada de uma jovem na vida
adulta, sobre a descoberta de um caminho para o perdão.
1 comentário:
Não será tanto culpa do tradutor, mas da editora... Actualmente, a maioria impõe o AO, pelo que o tradutor não tem outro remédio senão aplicá-lo.
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