sexta-feira, 30 de outubro de 2015

AQUÁRIO

Depois de A Ilha de Sukkwan (Edições Ahab, Junho de 2011) e de A Ilha de Caribou (idem, Abril de 2012), David Vann (n. 1966) regressa às livrarias portuguesas com Aquário (Relógio D’Água, Outubro de 2015). De lamentar a tradução, de José Lima, seguindo o novo Acordo Ortográfico, não porque seja má, mas por se tornar risível, a espaços, por culpa de um acordo criminoso. A diferença entre pára e para é só uma das tragédias mais gritantes, tornando por vezes a leitura deveras desconfortável. Para leitores que dominem o inglês, fique a nota: preferível será, creio, apostar na versão original. Os restantes, façam o esforço (se for caso disso). O livro de Vann bem o merece, como tinha ficado patente nas obras anteriores. Tanto a palavra ilha como a palavra aquário remetem para uma noção de isolamento, não sendo alheia a ambas, de igual modo, um certo sentimento protector. Mais no caso da palavra aquário do que na palavra ilha, é certo. Ainda assim, esta protecção advém do isolamento, ou seja, de certo distanciamento dos elementos agressores. Mas não é bem assim. Os dramas familiares encenados por David Vann nos seus romances encarregam-se de nos provar o contrário. O que haveria de insular e de protector na família, transforma-se, por via dos desencontros, dos desentendimentos, dos traumas, dos segredos, dos recalcamentos, das amarguras caladas, num palco aterrador de verdades eruptivas. As ilhas de David Vann não são locais idílicos para os quais levaríamos os objectos da nossa predilecção, são condições existenciais dentro das quais se forma a nossa personalidade. De modo similar, o aquário em Seattle que a jovem Caitlin visita diariamente não é apenas e tão-somente um reservatório de espécies protegidas. É, por outro lado, o microcosmo a partir do qual a existência pode ser entendida por comparação com as características das espécies ali preservadas. Como se toda a nossa vida fosse também uma luta pela preservação do que consideramos merecer tal esforço. A personagem central de Aquário é uma jovem de doze anos prestes a entrar na vida adulta pela via sempre dolorosa da verdade, uma via da qual os homens fogem por nela ser terrível confrontarem-se com as suas debilidades e contradições. Sobretudo com os seus medos, encarnados aqui na figura de um avô ausente que pretende reabilitar-se enquanto homem de família, através da neta, após dezanove anos de abandono. Remorso, raiva, ódio, rancor e amargura, misturam-se no coração da mãe de Caitlin, mãe solteira, estivadora, a fazer pela vida num meio inóspito e agressivo. Quem pode julgar quem neste aquário, onde cada espécie se afirma pelas suas características únicas e singulares, onde cada espécie parece em contradição com o mundo ao mesmo tempo que o define? O dispositivo encontrado por David Vann é magnífico, ele coloca-se e coloca-nos perante as suas personagens como a jovem Caitlin perante os peixes: «O problema com o aquário era que não podíamos ir para o pé deles» (p. 13). Em termos narrativos acaba por não haver problema algum, este distanciamento permite ao autor não transformar as emoções e os afectos num espectáculo degradante de sentimentalidade gratuita, mesmo quando coloca na boca da mãe de Caitlin a essência da realidade: «Bem-vinda ao mundo dos adultos, não tarda muito. Eu trabalho para poder trabalhar mais. Procuro não desejar nada para talvez conseguir alguma coisa. Passo fome para poder ser menos e mais. Tento ser livre para poder estar só. E nada disso faz sentido» (p. 25). O anúncio é desesperante, coloca no leitor as expectativas que desfazem a personagem. “Não tarda muito”, tanto nós como Caitlin ficaremos a saber, de facto, onde estão as brechas do refúgio, por que fenda entram os monstros que nos aguçam medos e temores. Seria contraproducente fazer aqui revelações sobre uma história que tem tanto para contar, mas não é displicente assinalar, mais uma vez, a importância dos contrastes na escrita de David Vann, sobretudo quando usa a dimensão mais agreste da natureza para sublevar os comportamentos humanos. Entre o homem e a floresta já não há apenas uma natural relação de continuidade, é como se o homem tivesse sido amputado dessa sua condição selvagem e, por consequência, se tivesse transformado num peixinho de aquário em busca de uma saída para o vasto Oceano. Esse mesmo Oceano onde a maior revelação é a descoberta de um «caminho para o perdão» (p. 219), o perdão que permitirá reunir o que foi afastado pela discórdia. Aquário é um excelente romance sobre a entrada de uma jovem na vida adulta, sobre a descoberta de um caminho para o perdão.

1 comentário:

RH disse...

Não será tanto culpa do tradutor, mas da editora... Actualmente, a maioria impõe o AO, pelo que o tradutor não tem outro remédio senão aplicá-lo.