terça-feira, 27 de outubro de 2015

«E AGORA, VAMOS AO QUE MAIS IMPORTA»


«E agora, vamos ao que mais importa»:
saber, na escrita, devolver
aos outros a força perdida
neste tempo sujo. Recuperar até
o som das tempestades, algum cheiro
a serra, campainhas, guizos.
E agora, vamos recomeçar as histórias
das fantasias todas no lameiro ou
na nespereira. Se não há bosque, já,
nem milho alto, perto da ribeira,
importa voltar a sentir
a força da isolada aldeia.
Subir ao monte e raspar a mica.
«E agora, vamos ao que mais importa».

*

«Vamos jogar de propósito destinado»
e recuperar o forte jogo da bilharda.
Ajudem-nos então a escancarar portões
de gonzos ferrugentos. Vamos voltar a encher
a loja de estrume fumegante. Abrir
as tulhas e caiar paredes. Reconstruir
canastro e pôr as telhas novas. Trazer
os gatos para fugirem ratos. Abrir
o forno para cozer o pão. Levar os potes
para o fogo da lareira. Ferrar cavalos,
ensinar os cães. Plantar árvores,
semear os campos. E sobre a casa,
como em tempos outros, erguer o ramo
de nova construção.

*

«E assim prosseguimos o volteio»,
no sábio ensinamento doutros mestres.
Franciscanos dizem que já somos,
quando apenas queremos dar as mãos.
E as mãos se juntam, ainda não
em prece, mas em trabalho. No reconstruir
a pedra da linguagem, o desejo
de um altar feito de pão que ainda
temos que amassar. A oferta somos
nós — assim nos damos. Bom começo
para quem muito quer andar. Peregrinos
seremos, mas mais tarde. Nómadas, errantes,
profetas se o quiserem. Mas agora,
com o mestre, prosseguimos o volteio.

*

«Cada mensagem é uma abertura
para o Ser». Obscuros são certos dizeres
mas a fria claridade também cega.
Não há cavernas, nem oiro, nem o raio
que ilumine de súbito a multidão.
Cada mensagem nossa é curta, mas é nossa,
mesmo no tremor com que dizemos certos
versos. Melhor assim: melhor a abertura
para o Ser. O outro ainda não sabe,
nem conhece. Está longe, na bruma
do riacho, ou nas torres medonhas
das cidades. Façamos lume com as
pedras, para aprendermos a incendiar
também nossas palavras novas.

O título desta série de poemas, assim como as frases que aparecem entre comas, foram retirados do livro de Eudoro de Souza, «Mitologia». Trata-se, portanto, de uma homenagem. 

Eduardo Guerra Carneiro (n. 1942 - m. 2004), in Contra a Corrente (1988). Os anos vão passando, e a voz de Eduardo Guerra Carneiro teima em não se fazer escutar. Poeta deixado na penumbra sem perdão, estreou-se na segunda metade da década de 1960. Foi um excelente cronista, como atesta o volume O Revólver do Repórter (1994). De resto, a sua poesia transporta igualmente o olho do repórter. Sem ocultar «a liberdade das imagens e das evocações naturais e espontâneas» (Cristina Cordeiro Oliveira), desenvolve em cada um dos seus livros um “fio narrativo” onde pressentimos a nostalgia do mundo rural num sujeito poético acossado pela agressividade da paisagem urbana. Inúmeras evocações afectivas surgem num contexto sugestivo, raramente declarativo, nos seus versos, os quais denunciam uma emotividade que por vezes se camufla por detrás da cortina rústica que subsidia parte da sua poesia. Sobre ele, em texto de contracapa, escreveu Manuel João Gomes: «Poesia em prosa, prosa de poeta incorrigível, melancólico, irónico, um tudo-nada romântico. Poesia às vezes jornalística, quotidiana e quotinocturna, em cima do acontecimento. Antes, durante e depois da ressaca. Confissões, recordações da terra natal, paisagens, retratos.»

3 comentários:

manuel a. domingos disse...

ora aí está

Luis Eme disse...

Tanta gente esquecida, sim...

Ando a ler Maria Judite de Carvalho e Isabel da Nóbrega (que foi mais que a segunda mulher e "mãe" de Saramago...), também nas suas crónicas de jornais que deram livros...

Tudo gente, mais ignorada que esquecida, como o Eduardo.

hmbf disse...

Enfim, sempre vamos nós abraçando o esquecimento.