quarta-feira, 4 de novembro de 2015

PEDRAS PELA MANHÃ


Pela manhã, ouço a crónica de Rui Cardoso Martins na Antena 1. Refere-se ao Deus do ministro que andou pelo All Garve a estrear galochas. Ouço-o com atenção e pergunto-me que mundo é este onde tudo cabe como se fosse irreal? Salgado triplica pensão para 90 mil euros por mês, diz a notícia. Há dias, na mesma Antena 1, alguém falava dos banqueiros condenados na Islândia. Condenados a prisão. O que é verdade? Em que devemos acreditar? Serão ambas as notícias verdadeiras? Neste mundo onde tudo é gigantesco, hiperbólico, fantástico, mega, híper, super, um site oferece a maior colecção de partituras do mundo, a Escócia vai albergar o maior parque eólico marinho do mundo, ser mãe é a profissão mais exigente do mundo… Sinto falta de coisas pequenas e breves, quotidianas, efémeras, sinto falta de coisas do meu tamanho, coisas que as minhas mãos possam realizar. O Parlamento Europeu suspendeu dois eurodeputados, um polaco e outro italiano, por terem discursos neonazis. Por serem pequenos, muito pequenos, humanamente ínfimos. Alguém comenta: «este senhor devia ser enrabado por uma guilhotina». Apesar da surrealidade imagética (não estou a ver como pode uma guilhotina enrabar alguém), quem suspende o comentador pelos seus comentários violentos? Isto passa-se diariamente e é como se nada fosse, as pessoas mergulham neste mundo agónico de opiniões à distância, de acusações à distância, protegidas pela distância, arrogam-se no direito de proferir barbaridades contra barbaridades como se estivessem a exibir as partes em local público. Tanta estupidez enoja, tanta demagogia, tanto populismo, tanto desrespeito admitido e promovido e inimputável. Pela imprensa de hoje, este título dissemina-se  como uma praga imbatível: «refugiados terão médico de família e não vão pagar taxas moderadoras». Adivinham-se os comentários. Portugal é um país estranho num mundo estranho. Salgado, alegadamente um dos maiores criminosos que este país conheceu, triplica a pensão e muita gente continua a olhá-lo com inexplicável complacência. Os refugiados terão médico de família e é o fim de um país, não pagam taxas moderadoras e é o fim do mundo. Repare-se no contraste: estarei a ser moralista se denunciar o tom populista, interesseiro, demagógico, sensacionalista do título sobre os refugiados? Estarei a ser moralista se denunciar o mesmo tom na notícia sobre Salgado? Estarei a ser ingénuo se esperar um pouco mais dos jornalistas que pensam títulos do que espero de uma actriz pornográfica? Talvez a imprensa se limite a reproduzir a estranheza do mundo, do mesmo mundo que aceita a convivência de uma rapariga a ser lapidada e de uma família feliz no seu novo Touran. A imagem ao alto é de dois vídeos, um noticioso, outro publicitário, passíveis de serem observados ao mesmo tempo na mesma página on-line de um jornal português. Contraste chocante? Não sei. Sugiro que tentem descobrir qual deles é o publicitário, qual deles é o noticioso. Depois fechem os olhos e imaginem que são refugiados a atravessar o Mediterrâneo. Talvez consigam morrer afogados.

4 comentários:

Inév Vie disse...

Pior do que tudo o que é dito é tudo o que é feito
Faz-se o que não se diz, diz-se o que não se faz.
E cá vamos nós.
O que se vai sabendo parece não importar, e não importa mesmo.
Todos os dias conhecemos um novo escândalo,
Todos os dias esquecemos um velho escândalo.
A Europa é um barco de borracha que atravessa o Mar Mediterrâneo.
Cada um que lá vai é um País, cada um por si, salve-se que puder.
Em cada habitante desse país, cada pensamento termina num, salve-se quem puder.
E cá vamos nós.
Um país ficou em terra, vendeu as viagens. Passeia-se de iate.
Nesse país nada acontece, salta-se daqui para ali.

Em cada país todos vendem suas vidas, querem ficar em terra,
Mas navegam, todos navegam, na mesma merda.
É difícil, quase impossível, escolher
Vais ou ficas?
Vais navegar na merda ou ficas numa guerra perdida?
Vais morrer ou fingir-te vivo?

Quem me dera ir não indo.
Ir de facto, não sendo
Ser de facto, não vendo
Ver de facto, não sentindo,
Sentir de facto, dormindo
Dormir de facto, sonhando.

Não há um só Cavaco, há milhares de Cavacos,
Tenho observado e pensado
como anda adequada esta gente a este tempo esforçado,
como gostam de ser mandadas, enganadas, banalizadas.
É oportunidade de viver do mesmo, de assim ser
A liberdade, o melhor fazer, cultura, saudável lazer
dá muito trabalho,
bom é um lamento, um engano, um sustento de cigano
Salvo seja! É raça atroz, meu Deus está a ver
sou pessoa crente, de bem
Tantas nozes, nenhum dente
Tantos dentes, nenhuma noz
Tudo falso, tudo eles, os outros
E cá vamos, quem?
Nós.


Abraço,
Inév

manuel a. domingos disse...

"imaginem" em vez de "imagem"

(não precisas de publicar)

hmbf disse...

grato a ambos

Inév Vie disse...

O espelho incomoda, à domingos que sim. Meias palavras , meios actos, mensagens para não publicar, meia gente. Muitos Cavacos que se dizem de esquerda, que dizem, é só ladrões!, mas vivem dum jeito dado aqui outro ali, contactos, influências, troca de favores, abusos de pequenos poderes. São muitos, quase todos os que se safam, safas-te? ou quê? e leva-se assim uma vida, por cima de tudo e de todos. No fim vão todos prá cova, bem funda, espera-se.