quinta-feira, 5 de novembro de 2015

UM POEMA DE HÖLDERLIN

O ÓCIO

   Dorme descuidado o peito e repousam os pensamentos graves.
Vou para o prado lá fora, onde a erva me brota
Fresca, como a fonte, da raiz, onde o lábio amoroso da flor
Se abre pra mim e mudo com hálito doce me bafeja,
E em mil ramos do bosque, como em velas a arder,
Me brilha a chama da vida, a avermelhada flor,
Onde na fonte com sol os peixes contentes se agitam,
Onde a andorinha esvoaça c'os filhos loucos à volta do ninho,
E as borboletas se alegram e as abelhas; e aí vou eu
Por entre os seus prazeres; e eis-me no campo pacífico
Como um ulmeiro amoroso, e como vides e uvas
Enroscam-se a mim os doces jogos da vida.

   Ou quando olho às vezes pra o monte, que de nuvens
Coroa a cabeça e sacode os cabelos escuros
Ao vento, e quando ele me traz no ombro potente,
Quando o ar mais leve me encanta os sentidos
E o vale infinito, qual nuvem de cores,
Jaz a meus pés, faço-me águia e, liberta do solo,
Minha vida, como os nómadas, muda de casa no todo da Natureza.

   E agora o caminho me guia de novo pra a vida dos homens,
De longe alveja a cidade, como armadura de bronze
Forjada contra o poder do deus das tempestades e dos homens,
Olha ao alto majestosa, e em volta repousam aldeias;
E os telhados envolve, corado da luz da tardinha,
Amigável o fumo doméstico; repousam jardins com sebes
Cuidadas, dorme o arado nos campos talhados.

   Mas para o luar ascendem as colunas quebradas
E as portas dos templos, que outrora o terrível, secreto
Espírito da revolta feriu, que no seio da terra e dos homens
Braveja e referve, o indómito, o velho conquistador
Que rasga as cidades como cordeiros, que outrora assaltou
O Olimpo, que se agita no seio dos montes e vomita chamas,
Que arranca as florestas e passa pelo Oceano
E quebra os navios, e contudo em tua ordem eterna
Te não perturba, ó Natureza, na tábua das tuas leis
Nem uma sílaba apaga, esse que também é teu filho, ó Natureza
Nascido dum ventre junto com o espírito da paz. —

   E quando em casa então, onde as árvores rumorejam à minha janela,
E o ar brinca com a luz, uma página que conta
Da vida humana leio até ao fim,
Vida! Vida do Mundo! eis-te ante mim como um bosque sagrado.
Falo eu então, e tome quem queira o machado pra derrubar-te,
Feliz moro em ti.


(Johann Christian Friedrich) Hölderlin (n. 20 de Março de 1770, Lauffen, Alemanha - m. 7 de Junho de 1843, Tubinga, Alemanha), in Poemas, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Relógio D'Água, 1991, pp. 59-61. De acordo com a 2.ª edição publicada pela Atlântida em 1959.

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