ISTO
Que eu pudesse, enfim, dizer o que trago dentro de mim.
Gritar: gente, mentia-vos
Ao dizer que não tenho ISTO em mim,
Quando ISTO permanece cá de dia e de noite.
Embora, justamente graças a ISTO
Soube descrever as vossas cidades inflamáveis,
Os vossos breves amores e jogos desfazendo-se em pó,
Brincos, espelhos, uma alça que caía,
Cenas em quartos e em campos após a batalha.
A escrita era para mim estratégia de camuflagem,
De apagar vestígios. Porque não se gosta daqueles
Que aspiram o proibido.
Socorro-me dos rios nos quais nadava, dos lagos
Com uma passagem entre os juncais, do vale,
Onde o eco da cantiga é secundado pela luz do ocaso,
E confesso que os meus elogios extáticos da existência
Poderiam ser meros exercícios de estilo elevado,
Mas por baixo estava ISTO que não sou capaz de nomear.
ISTO é comparável aos pensamentos do desabrigado
Quando vai pela cidade gélida e estranha
E ao instante em que o judeu acossado vê aproximarem-se
Os pesados capacetes dos gendarmes alemães.
ISTO revela-se também quando um príncipe vai à cidade
E vê o mundo real: a miséria, a doença, a velhice e a morte.
ISTO está igualmente no rosto petrificado de quem
Descobriu que foi para sempre abandonado.
E nas palavras do médico sobre a sentença sem recurso.
Porque ISTO significa o esbarrar contra o muro,
Sabendo que ele não cederá a quaisquer implorações nossas.
Czesław Miłosz (n. 30 de Junho de 1911, Šeteniai, Lituânia –
m. 14 de Agosto de 2004, Cracóvia, Polónia), in Alguns gostam de poesia –
Antologia, selecção, introdução e tradução do polaco de Elżbieta Milewska e Sérgio
das Neves, Cavalo de Ferro, Março de 2004, pp. 93-95.
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