quarta-feira, 18 de novembro de 2015

UM POEMA DE EDGAR ALLAN POE

O TEMPORA! O MORES!

Ó Tempos! Ó Costumes! A meu ver, parece
Que mudais, por má sorte, as vossas fronteiras...
Quero dizer, cessou o reino das maneiras,
Pois não as há... ou só maus modos prevalecem;
E se dizem alguns, no que aos Tempos respeita,
Que esses «bons velhos tempo» foram os piores
(Sentença que me guia, e é bom o seu preceito),
Creio porém que os nossos são algo inferiores.

I've been a thinking — não é assim que se diz?
...Aprazem-me as palavras, os modos yankees...
Que seria melhor? Ando eu a cogitar...
Levar o mundo a sério ou a brincar;
Chorar como fazia Heráclito, o sombrio,
Até a vista arder, em cego desvario,
Ou então rir com ele, o estranho Pensador,
Demócrito de Trácia que, sem rancor,
Via passar a vida e sorria da sorte,
Como quem diz: «Mas que diabo me importa?»

Este é um impasse... oh, Céus!... deveras espinhoso...
Nos livre Deus de o ver em garras judiciosas!
Job não vê dois lados à questão, mas oito,
Valendo cada um por quatro horas de intróito.
O que fazer?... senão deixá-la em suspenso
E abordar o assunto em tempo mais propenso?
E no entretanto... não quero eu dissabores,
Não rio com o primeiro nem com o outro choro,
Não quero nem calúnias nem adulações...
Limito-me a rosnar sem melindrar facções.

«Ah, rosnar...», diz-me o amigo, «Pois bem, e a quê?»
Oh, quase me esqueci, é verdade... bem vê...
Mas, rais' partam, senhor, acho eu indecente
Que ousem as criaturas olhar-nos de frente,
E andar por aí, com vénias e achaques,
E pretendam ser homens com ar de macacos.
Perdoa-me, leitor, aquele palavrão
Por causa do macaco a que tenho aversão...
O meu estilo, bem sei, parece descuidado...
Mas oh, não desesperes... Daqui a bocado
Eu mudo... e faço como os estadistas inanes:
Emendo os meus costumes e os meus ditames.

Vi muitas das cidades que no mundo há
(Pois como a si, meu caro, a viagem me apraz...);
Não recordo uma só, isso juro a pés juntos,
Que, atendendo a tudo no mesmo conjunto
(Como no Parlamento se usa o juízo,
Pois se pode quebrar caso esteja diviso),
Fosse como esta tão mimosa, ai! tão condicente
Com o brio dum caixeiro de garbo e talento!
Pois aqui poderá divagar a contento
Em nadar como peixe em seu próprio elemento,
Arredar as melenas, tão belas, da testa,
E pular aos balcões com donaire de Vestris,
Acabar à tardinha o dever matinal,
E dançar com donzelas mais logo no baile,
Que não vão desdenhar, apesar de enganadas,
A mão grácil que vende os enfeites rendados,
E nenhuma é tão fria que rejeite, ingrata,
Esse jovem que avia laços para os sapatos!
A mim me coube em sorte, Deus meu, conhecer
Um dos peixes que falo, e belo a valer...
Pelo menos de vista... pois sou recatado
E não gosto de rir e de ser incorrecto...
Mas a quem lhe falar, lança ele tal esgar
Que nenhum rosto humano se mantém
    circunspecto.
Por ele as damas todas de amores se travam,
E no lindo sombrero os seus olhos se cravam...
E nas abas de grilo... de alta estimação...
Tais olhos, oh! não hão-de caçar um varão.

A voz dele é melodia de embalar,
A figura, entrevista, é já parte do olhar;
Em suma: o colarinho, a postura, o aspeito
São o beau idéal de um Adónis perfeito.
Há muito que os Doutos entre si contendem
Se pensam só os homens, ou bestas também,
Mas de que estas são capazes de pensar
É coisa em que o galã faz prova exemplar;
E embora cada tempo tenha as suas crenças,
Um facto assente vale mais que dez sentenças.

Porque ele pensa... ainda que eu, incerto, hesite
Sobre o preciso objecto em que tanto cogita.
Ah, sim!... o pé e o tornozelo delicados...
É neles que a razão assenta a morada:
Se, claudicante, um sábio abana a cabeça,
Logo ele abana o pé, e nunca tropeça...
Será que eu, por tal pé, sofrerei algum dano
(O que prova que pensa, e nisso não me engano)
Por lhe mostrar ao espelho seus olhos de gato
Onde pode mirar-se o asno caricato?
Tirará, julgo eu, as parecenças tão óbvias...
Mas, caso o não faça, o estulto pacóvio,
Não há-de a charada deixá-lo inquieto,
Pois com o nome Pitts o retrato completo.


Edgar Allan Poe (n. 19 de Janeiro de 1809, Boston - m. 7 de Outubro de 1849, Baltimore), in Obra Poética Completa, tradução, introdução e notas de Margarida Vale de Gato, ilustrações de Filipe Abranches, Edições Tinta-da-China, Março de 2009, pp. 191-193. Nota: «A personagem ridicularizada neste poema foi identificada como Robert Pitts, empregado numa loja de venda a retalho em Richmond, que se relacionava com alguns políticos influentes e arrendava um quarto numa casa onde residiam também vários juristas (donde o emprego de termos legais no poema)».

2 comentários:

Maria Eu disse...

Vamos tendo uns Pitts neste nosso rectângulo.

Boa noite. :)

hmbf disse...

ah sim, e para todos os gostos