terça-feira, 29 de dezembro de 2015

LIVROS: O MELHOR DE 2015


Este ano, o exercício que proponho aos leitores da Antologia é pensarmos o livro para lá do que nos pretendem impor, em termos genéricos, os chamados críticos da especialidade, com suas listas de preferências mais do que previsíveis, complacentemente reproduzidas por autores, editores e livreiros instalados nas redes sociais. O livro é hoje uma mercadoria tal qual os sabonetes o são. Basta entrar nas livrarias para o constatar, conquanto devamos sempre perscrutar nas prateleiras e no refundo ao encontro insistente das preciosidades que consigam resistir ao sufoco imposto pela novidade. Não me interessa, pois, essa figura abstracta dos dez melhores livros do ano, sobretudo num país onde se publicam dezenas de novidades por dia, onde rareiam livrarias e editores independentes dos grupos e das redes hegemónicas, onde o lixo e a poluição são o que mais se evidencia. Interessam-me os livros e suas componentes. Daí que, este ano, o exercício recaia sobre o livro enquanto objecto. As minhas escolhas são limitadas às minhas leituras, como é óbvio. Mas são autónomas, livres e declaradamente diletantes. Assim sendo,

Melhor cinta do ano


A maioria das cintas são um verdadeiro pesadelo, ofendem as capas, rasgam-se, reduzem-se a mera propaganda sem interesse: prémio tantos de tal, milhares de exemplares vendidos, o livro preferido de X...  Neste caso tudo é equilibrado e pertinente. A 2.ª edição, revista, de A Última Sessão  — A Edição dos "Textos Malditos" de Luiz Pacheco foi publicada em Maio de 2014 pela Montag — uma edição para retronautas.

Melhor primeira orelha/badana do ano

O que esperamos de uma primeira badana? Regra geral, tudo menos o que por lá se põe: perorações inúteis do editor, dados biográficos inconclusivos, recepção crítica seleccionada, etc.. Com uma primeira badana quase ao largo da página, Os Filmes da Minha Vida, de François Truffaut, editado pela Orfeu Negro em Maio de 2015, oferece, desde logo, os nomes dos realizadores abordados no miolo. Excelente livro, excelente capa, excelente design, incompreensivelmente omitido nas listas que por aí pululam.

Melhor guarda do ano

Quase sempre reduzida à pobreza da página em branco, a guarda mereceu uma especial atenção na antologia O Desejado — Robot Bimby, colectânea poética sebastiânica organizada por Jorge Corvo Branco e publicada pela Companhia das Ilhas (26 de Setembro de 2015). Rara é a beleza desta guarda. 

Melhor capa do ano

A escolha não poderia recair senão sobre um livro da editora Tinta-da-China, que há muito se vem destacando pelo bom gosto a vários títulos. As pinhas e a caruma na capa de Andar a Par (Maio de 2015), de José Ricardo Nunes, fazem justiça ao melhor livro de poesia portuguesa publicado em 2015. 

Melhor folha de guarda

Deixando de lado elementos altamente técnicos, tais como o melhor corte superior, o melhor corte dianteiro e o melhor corte inferior, avanço directamente para a melhor folha de guarda. A referência principal vai para Manual de Instruções Para Desaparecer, de José Anjos, publicado pela Abysmo em Abril de 2015. Porquê? Porque resolveram preservar a excelente ilustração da capa, assinada por Luísa Jacinto, guardando para a folha de guarda o título da obra, o nome do autor e a referência editorial. 

Melhor folha de rosto do ano

O livro póstumo de Herberto Helder foi o momento mais paradoxal do ano em termos literários. Ver o nome do poeta associado ao maior grupo editorial português, com uma raríssima fotografia a olhar-nos do lado esquerdo, seria algo impensável há anos. Aconteceu. Ironia? Resignação? Provocação? Cada qual interprete como bem entender. Poemas Canhotos (Porto Editora, Maio de 2015) é só um mau livro de poesia de um dos mais relevantes poetas portugueses do séc. XX.

Melhor dobra do ano

Chamemos-lhe dobra. A Mariposa Azual tem, desde a primeira hora, o hábito de deixar uma página em branco para as notas do leitor. É um belo hábito ao qual Um Teste de Resistores (Janeiro de 2015), de Marília Garcia, não foi excepção. Num ano em que a publicação em Portugal de poesia brasileira contemporânea esteve à discussão, este livro merece também uma referência especial pelo conteúdo perturbador.

Melhor segunda orelha do ano

Nas segundas orelhas encontramos de tudo o que o mau gosto permite: listas dos títulos de colecção em que a obra se insere, citações de críticas publicadas na imprensa, notas bio-bibliográficas do autor, citações do livro. Naquele que é, para mim, um dos livros do ano, Dada — História de uma Subversão (Novembro de 2015), de Henri Béhar e Michel Carassou, com tradução de José Miranda Justo, os editores refractários reservaram um excelente sumário da obra em apreço. E é assim que deve ser. Conto escrever sobre este livro em breve.

Melhor contracapa do ano

Quem goste de livros, não pode ficar indiferente ao trabalho extraordinário que algumas editoras portuguesas vão fazendo contra as ventanias de banalidade e as marés de superficialidade reinantes no mercado. A Antígona é uma dessas editoras. A contracapa de Música para Água Ardente (Março de 2015), tradução de Rita Carvalho e Guerra para Hot Water Music de Charles Bukowski, devia ser estudada nas universidades. Quem veja mal, leia o "contrarótulo" da garrafa reproduzida: «qual é o seu conselho para os escritores jovens? Bebam, fodam e fumem muitos cigarros. Qual é o seu conselho para os escritores mais velhos? Se ainda estão vivos, não precisam do meu conselho. // Ler sem moderação». 

Melhor lombada do ano

Quem trabalhe ou frequente livrarias, sabe que a ausência de um critério uniforme na disposição de informações nas lombadas provoca frequentemente indesejáveis torcicolos. Nos livros ao alto temos um bom exemplo do que devia suceder sempre: símbolo do editor na base, nome do autor ao alto, escrito de cima para baixo, seguido do título da obra. Facilita a pesquisa e evita dores musculares. 

Melhor formato do ano

Em Março, o crítico literário António Guerreiro referia-se à proliferação imoderada e imprudente de plaquettes como um lado negativo no círculo elitista da poesia. Não se entende a preocupação, sobretudo por não a termos observado a respeito das inúmeras plaquettes publicadas em tempos por Contraponto, &etc ou Averno. Meros exemplos. Hossanas, pois, à plaquette e às suas virtudes. Ao alto, Chaconne ou a arte de mudar de assunto, de Miguel Castro Caldas, publicado em Janeiro de 2015, logo a inaugurar o ano, pela rainha das plaquettes, mais conhecida por Douda Correria. É o n.º 15 de um conjunto diverso, imoderado, imprudente e desequilibrado de apreciáveis edições.

Melhor impressão do ano

Composto em tipografia de caracteres móveis e capa em serigrafia, Púsias (Fevereiro de 2015), de Vitor Silva Tavares, é a homenagem perfeita a um certo olhar sobre os livros que se perdeu com a perda do autor deste livro. Quando estamos perante os livros das Edições 50kg sentimos que estamos perante objectos raros, e rara é a beleza. Capa de Luís Henriques.

Melhor miolo do ano

Com a publicação de Atrás das pálpebras, o sonho abriu os olhos., o alfarrabista Miguel de Carvalho ofereceu-nos um testemunho impagável sobre a arte do livro-objecto. No princípio não era o verbo (Debout Sur L'Oeuf, Abril de 2015), materializa, de certa forma, a tese. Trata-se de um livro-objecto reproduzível, único na sua beleza, mas reproduzível. É poesia, é poesia visual, é para ler com os sentidos anteriores ao verbo. Um livro com uma linguagem prévia à linguagem. Magnífico.

Melhor sobrecapa do ano

É difícil perceber a beleza deste objecto sem o ter nas mãos. Paginado e composto por Pedro Serpa, tem uma sobrecapa em papel vegetal que é como o mais fino pano no estendal. Impressa e vincada e dobrada e encapada manualmente na oficina artesanal O Homem do Saco, a sobrecapa de À Barbárie Seguem-se os Estendais (&etc, Fevereiro de 2015) é um dos grandes momentos na livrolândia portuguesa deste ano. Para o mesmo livro vão os prémios:

Melhores agradecimentos e melhor posfácio do ano

Melhor dedicatória do ano

Uma dedicatória que é um poema: «para o filhastro / ler depois». In Miguel-Manso, Persianas, Tinta-da-China, Março de 2015. Outra grande capa da colecção de poesia coordenada por Pedro Mexia.

Melhor epígrafe do ano

Há epígrafes que a gente pressente que estão por estar, mas há outras que a gente sente que não podiam ser de outra maneira. Num dos romances mais injustamente esquecidos do ano, O Terceiro Polícia (Cavalo de ferro, Junho de 2015), de Flann O'Brien, esta epígrafe de De Selby não podia ser de outra maneira: «Sendo a existência humana uma alucinação que contém, em si mesma, as alucinações secundárias do dia e da noite (a última um estado insalubre da atmosfera devido ao desenvolvimento orgânico do ar negro), fica mal a qualquer homem sensato preocupar-se com a abordagem ilusória da alucinação suprema conhecida como morte». A tradução é de Rita Carvalho e Guerra.

Melhor sumário do ano

Luís Quintais reuniu este ano a sua produção poética sob um título lindíssimo: Arrancar Penas a Um Canto de Cisne (Assírio & Alvim, Outubro de 2015). Fê-lo ao contrário do que é costume fazer-se, ou seja, do livro mais recente para o livro mais antigo. E explicou: «A memória faz-se ao contrário. Assim fiz a minha. Procurei, porém, não desfigurar. Corrigi erros, arrumei melhor, alguns poemas foram eliminados, outros, que esquecera, foram incluídos, reescrevi pontualmente». Não vejo outra maneira de olhar o passado através do que se foi escrevendo.

Melhor prefácio do ano

O prefácio de Anselm Jappe a O Fetichismo da Mercadoria e o seu segredo, de Karl Marx, publicado pela Antígona em Julho de 2015, é uma excelente introdução a uma leitura actualizada e "actualizante" do marxismo. Vale citar: «Ser explorado torna-se quase um privilégio (que os restos do velho proletariado fabril da Europa defendem com unhas e dentes), quando o capitalismo continua a transformar cada vez mais pessoas em «homens supérfluos», em «desperdícios».»

Melhor nota de rodapé do ano

Prolixo em notas de rodapé, Estado Islâmico: Estado de Terror (Vogais, Abril de 2015), foi o melhor livro que li sobre o mais indigesto dos assuntos da actualidade. Algumas das notas de rodapé são verdadeiramente inquietantes. Como esta: «Não podemos deixar de nos perguntar por que razão o EI se concentra naqueles valores «sagrados» que justificam matar xiitas, escravizar «politeístas» e atirar homossexuais do cimo de edifícios altos (apesar de o sexo homossexual parecer ser tolerado entre os próprios combatentes do EI)». Ou esta: «O movimento Darbyite dos anos 1830-1880 foi o precursor para o fundamentalismo cristão moderno e forneceu a base teológica para a ascensão da ênfase fundamentalista no literalismo bíblico e a noção de «dispensação pré-milenarista» — de que Jesus regressará antes do seu governo de mil anos, e de que a Humanidade terá entrado no fim dos tempos depois de receber anteriores «dispensações» de Deus, na forma da expulsão de Adão do Éden, do Dilúvio e da graça de Cristo, a que o Homem falhou em responder». A reflectir sobre o assunto.

Melhor cólofon do ano

Publicado em Novembro de 2015, Baço, de manuel a. domingos, reúne poemas escritos entre Janeiro e Julho do mesmo ano. A referência ao lugar onde os mesmos foram escritos é um testemunho que não deve ser lido, à luz da poesia do autor, como meramente sarcástico: «num quarto com marquise (trezentos euros/tudo incluído)». A precariedade é uma fonte inesgotável de boa poesia. Publicado pelo projecto Medula, paralelo às margens, mas premiado como convém.

Melhor colecção do ano

Continuo a gostar dos Retratos da Fundação publicados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Comecei o ano a ler Malditos — histórias de homens e de lobos (Dezembro de 2014), por Ricardo J. Rodrigues, e deliciei-me, logo de seguida, com Aleluia! (Janeiro de 2015), de Bruno Vieira Amaral. Livros económicos, bem escritos, informativos, com um design impecável.

Melhor bibliografia do ano

Num livro repleto de pormenores tão deliciosos quão arriscados, o jovem poeta Leonardo (n. 1993, Ponta Delgada) resolveu incluir uma bio-biliografia [algum motor] onde cabem amigos, leituras, influências culturais de ordem diversa. Tem tanto de bibliográfico como de agradecimento, este momento mor que termina assim: «as ruínas da casa primeira, o cavaleiro do apocalipse que regressa / ao império em chamas, mãe / e demais amigos e entidades e gratidões e artes e perícias e equívocos, / cegos, reordenados, parafraseados, orbitando, noite: / oxi oxi, eu bem sei que erro // (2013-2015) // ab imo pectore, // leonardo». A edição de âmbula [: pés, punhos, tórax: manicómio/manicórdio] (Outubro de 2015) coube à Companhia das Ilhas. Só ficamos a saber quem é o autor quando chegamos ao fim. Bom e estranho livro.

Melhor título do ano

Digamos que se trata de um título síntese, onde poderia caber todo um balanço sobre o ano prestes a findar. Problemas no Paraíso (Bertrand Editora, Setembro de 2015), é muito mais do que um ensaio de Slavoj Žižek sobre a crise do capitalismo e a pertinência do comunismo na actualidade. É um ensaio para lá do fim da história e do futuro pós-humano, é uma espécie de revisão da matéria dada que nos obriga a pensar a nossa vida na Terra sob prismas raramente questionáveis. Belo título.


O livro do ano



Pelo dito e pelo não dito, o livro do ano só poderia ser este Editor Contra: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite (Novembro de 2015), organizado por Pedro Piedade Marques e editado pela Montag. Tem tudo o que de melhor as referências supra revelam, é um objecto único e inesgotável, de raríssimo cuidado e beleza. A seu tempo, diremos de nossa justiça. Fica, para já, a eleição. 

7 comentários:

MJLF disse...

Belo critério sim sim, vou passar a olhar para os livros de outro modo. E comprar o editor do contra. Saúde, bom ano novo e bjs para toda a tribo

hmbf disse...

Olá Maria João, já sei que entregaste a tese. Que em 2016 sejas recompensada pelo trabalho. Bom ano e saúde, h

João Gaspar disse...

melhor lista do ano. obrigado.

hmbf disse...

Eu é que te agradeço, João Gaspar. :-)

Ricardo António Alves disse...

É para guardar...

Ricardo António Alves disse...

Sugiro, mesmo, que seja inaugurada uma tradição :|

Um Jeito Manso disse...

Muito bom. Muito didáctico. Livreiro e bibliófilo, o Henrique -- para além de Poeta, claro.