terça-feira, 15 de dezembro de 2015

UMA VEZ QUE TUDO SE PERDEU

Não sei quão exacto será considerar que Pedro Mexia (n. 1972) não publicava nenhum livro de poemas há mais de dez anos, mais concretamente desde Vida Oculta (Relógio d’Água, Novembro de 2004) — o sexto volume de um conjunto que o poeta resolveu assumir como “aproveitável”. Muito do que o autor nos tem oferecido nos seus diários se aproxima, pelo tom e até, por vezes, pela forma, dos elementos mais característicos do seu trabalho poético. Rigor, contenção e exigência são talvez as marcas mais evidentes do que foi sendo apurado desde Duplo Império (Edição do autor, 1999), conjunto de poemas reveladores de uma capacidade de problematizar o real que coloca o indivíduo e a sua subjectividade no centro de toda a recriação. É uma poesia onde a memória pesa avassaladoramente sobre os ombros do sujeito poético, o qual se apresenta quase invariavelmente dissimulado pelas evidências.
O jogo que os poemas de Mexia introduzem é o de uma identidade dissimulando-se constantemente, seja através da inclusão de traduções de outras vozes no conjunto da obra, seja mediante teatralizações biográficas que transformam o poema num pequeno enigma tantas vezes indecifrável aos olhos do leitor. As versões de John Berryman, Robert Lowell, Dylan Thomas, Michel Butor, Erich Fried, Wallace Stevens e Donald Justice incluídas em Uma Vez Que Tudo se Perdeu (Tinta-da-China, Novembro de 2015) — título pedido de empréstimo a um verso de Ruy Belo, com ligeira variação —, encontram no Soneto à Morte de Pedro Mexía, de Gutierre de Cetina, a expressão máxima de uma ironia sobre as vozes que ecoam na voz do sujeito. Uno na sua divisibilidade, Pedro Mexia (n. 1972) também é Pedro Mexía (n. 1497 – m. 1551), aquele que só em imaginação e por coincidência onomástica já está morto e até cantado, mas que na realidade em parte desapareceu com o passar da infância e da juventude. O biografismo elíptico destes poemas insinua, deste modo, uma inquietação acerca da singularidade que a memória se encarrega de adensar.
Dois exemplos: a imagem reproduzida na capa do livro e um poema, talvez dos melhores que Mexia publicou até à data. A imagem convoca a praia da Figueira da Foz num tempo que já não existe, o tempo da infância e da primeira adolescência do poeta. No entanto, perduram na idade adulta memórias desse tempo. E é ao relógio característico dessa praia que hoje se pergunta: «Relógio, coluna do tempo, / juiz taciturno, / viste quem eu era / e quem sou agora?» (p. 60) Se esta relação com o tempo convoca Ruy Belo, a relação com o lugar não deixa de convocar Jorge de Sena através do romance Sinais de Fogo. Este diálogo com o passado é também um diálogo com o principal ensinamento dos mestres, a forma como o tempo subtrai expectativas à medida que as desilusões, os arrependimentos, o remorso e até uma certa desesperança (se não estranha, pelo menos problemática num católico assumido) dão lugar a um pessimismo que tem tanto de escudo como de espada. Neste sentido, são de reter os poemas deste livro que, entre as páginas 18 e 26 (o índice é omisso quanto a alguns títulos), focam a questão da amizade.
Depois vem o poema. Em Katherine Whitmore Dá Uma Aula Sobre Pedro Salinas, Mexia encena uma aula de literatura em que a professora Katherine Whitmore questiona as alunas do Smith College sobre a identidade da amada evocada nos poemas de Salinas. Será um conceito poético? Será uma mulher concreta? «Katherine diz que o poético é o ambíguo, / embora também o inquietante, o clamoroso» (p. 49). Mas nós sabemos que, na realidade, Salinas se apaixonou por Katherine, podendo muito bem a professora ser a mulher concreta por detrás do conceito ou o conceito por detrás da mulher concreta. A jogada encenada no poema não é inocente, resulta como uma arte poética no contexto desta poesia que está constantemente a subverter os lugares do real e do imaginário atribuindo a cada um deles o papel daquilo que, em aparência, se lhe opõe. Talvez a conclusão possa ser pensada ao nível da relação abstracta entre uma palavra e o seu objecto, talvez toda a poesia resulte dessa abstracção bem mais simples do que a nossa capacidade para interpretar supõe. Talvez, afinal, tudo seja simplesmente o que é, ou seja, o que foi, «uma vez que já tudo se perdeu» (Ruy Belo, in Homem de Palavra[s])

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