Pensai no albatroz. De onde provêm essas nuvens de êxtase espiritual e de alvacento horror no meio das quais esse pálido fantasma voga em todas as imaginações? Não foi Coleridge o primeiro responsável por esse feitiço, mas o grande e pouco lisonjeiro poeta de Deus, a Natureza.*
*Recordo-me da primeira vez que vi um albatroz. Foi durante uma prolongada tempestade não longe dos mares antárcticos. Durante o meu quarto da manhã, na coberta, eu tinha subido à ponte envolta em bruma; e ali vi pousar na escotilha principal uma coisa magnífica e emplumada, de uma brancura imaculada e com um bico recurvo como um sublime nariz romano. De vez em quando o animal abria as suas vastas asas de arcanjo, como para cobrir uma arca santa. Sacudiam-no estremecimentos e batimentos extraordinários. Embora fisicamente indemne soltava gritos, como o espectro de um rei sofrendo angústias sobrenaturais. No fundo dos seus olhos estranhos e inexpressivos pareceu-me surpreender segredos divinos. Inclinei-me como Abraão em frente dos anjos; aquela aparição branca era tão branca, as suas asas tão grandes e, nestas paragens, tinham um ar tão irremediavelmente exilado, que me fizeram esquecer as recordações mesquinhas de tradições e cidades. Fiquei longamente a contemplar aquela maravilha de plumagem. Apenas posso sugerir vagamente todas as ideias que então me cruzaram o espírito. Finalmente, saí do meu devaneio e perguntei a um marinheiro que espécie de ave era aquela. «Um goney», respondeu-me ele. Um goney! Nunca ouvira tal nome. Seria possível que aquele ser glorioso fosse totalmente ignorado pelos homens da terra? Por certo que não! Mais tarde vim a saber que goney era o nome que alguns marinheiros davam ao albatroz. Os extraordinários versos de Coleridge são totalmente alheios às impressões místicas que me despertou a visão daquela ave sobre a ponte, porque nesse momento ainda não lera as suas rimas e desconhecia que me encontrava diante de um albatroz. Dizendo isto, estou de certo modo a exaltar indirectamente os méritos já de si brilhantes do poeta e do poema.
Afirmo, pois, que na sua maravilhosa brancura a ave oculta o segredo do seu encanto; verdade tornada ainda mais evidente pelo solecismo que é o de haver aves chamadas «albatrozes cinzentos». Vi estes últimos muitas vezes, conquanto nenhum deles me tenha proporcionado uma emoção comparável à que senti ao ver o albatroz antárctico.
Como tinha sido capturada aquela criatura mística? Se me prometem guardar segredo, eu digo... Com uma linha e um anzol traiçoeiro, quando o bicho flutuava no mar. Finalmente, o capitão serviu-se dele como correio, atando-lhe ao pescoço um pedaço de cabedal, onde inscreveu a hora e a posição do navio; depois disso libertou-o. Contudo, tenho a certeza de que esse pedaço de cabedal, expedido para o mundo dos homens, foi levado para o Céu, quando essa ave branca se foi reunir aos querubins na sua perpétua adoração.
Herman Melville, in Moby Dick, tradução de Joaquim L. Duarte Peixoto, Publicações Europa-América, Novembro de 2002, pp. 245-246.
O ALBATROZ
Por mera brincadeira, os homens de equipagem
Caçam enormes aves do mar, albatrozes
Que, indolentes, costumam seguir a viagem
Do navio percorrendo abismos tenebrosos.
Assim que sobre aquelas tábuas são largados
Os reis do céu azul, envergonhados, trôpegos,
Deixam cair, humildes, as imensas asas,
Que arrastam pelo chão, como remos já soltos.
Como está mole e frouxo o alado peregrino!
Ele, que tão belo foi, ei-lo cómico e feio!
Um espicaça-lhe o bico, usando o seu cachimbo,
E um outro, coxeando, imita o pobre enfermo!
O poeta é igual ao príncipe das nuvens
Que se ri do arqueiro e afronta a tempestade;
Exilado na terra e no meio dos apupos,
As asas de gigante impedem-no de andar.
Charles Baudelaire, in As Flores do Mal, tradução de Fernando Pinto do Amaral, Assírio & Alvim, 3.ª edição, Maio de 1996, p. 55.
2 comentários:
Mas... Mas... Mas... passei por essa parte do Moby Dick hoje!!!
:)
Eu era o mosquito que a pirata espantou. ;-)
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