quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

B DE BEBER

   Não esmoreças perante tão parco entusiasmo. Combate o tédio, o teu maior inimigo. Combate-o até à exaustão. Evita, porém, fazer dessa luta uma rotina. Combate-o com acasos e contingências, abre o peito aos improvisos e deixa que sobre ti aconteçam catástrofes renovadoras. 
   O álcool voltou a estar recentemente sobre a mesa. Parece que são mais os portugueses que morrem por coma alcoólico do que aqueles que morrem devido ao consumo excessivo de outras drogas, nomeadamente as drogas proibidas por uma sociedade sempre muito atenta ao que mata os seus cidadãos. 
   A mim mata-me o tédio, tortura-me lentamente. Que ninguém se preocupe, é problema meu. Combato-o como posso. Por exemplo, a beber. Mas sempre me interroguei sobre o porquê dos escritores beberem. São inúmeros os elogios ao vinho e ao álcool passados à letra, muito mais do que os elogios a qualquer outro tipo de drogas. Só o sexo terá merecido na literatura tantos elogios quanto o vinho. Ninguém questiona o gosto do sexo. É natural. Já o vinho, não. Por que bebem os escritores? 
   Comecemos por uma ruba’i de Omar Khayyam, até pela origem islâmica do autor:

O nosso tesouro? O vinho.
O nosso palácio? A taberna.
Os nossos fiéis companheiros? A sede e a embriaguez.
Ignoramos a inquietude, porque sabemos que as nossas almas
corações e taças e as nossas roupas maculadas nada têm a temer
do pó, da água e do fogo.

   Admitamos um significado metafórico escondido por debaixo das palavras, as quais não têm em Khayyam reflexo na ligeireza dos versos. Aquela embriaguez podia ser mística, não tivesse sido associada à taberna, dita palácio, e ao vinho, dito tesouro. São versos que fazem justiça a um mito real, passe a expressão, segundo o qual o álcool encoraja e liberta. 
   O bêbado é o destemido que tudo afronta, o álcool quebra-lhe os grilhões como Prometeu entrega o fogo. A alucinação está na percepção de uma certa distância que o vinho imprime, aquietando almas e corações perturbados pelos constrangimentos impostos pela lei (pó, água, fogo, elementos originais). 
   Baudelaire, autor de Os Paraísos Artificiais, afina pelo mesmo escansão. Mas acrescenta algo ao problema no famoso ensaio Sobre o vinho e o haxixe comparados como meio de multiplicação da individualidade:

O vinho exalta a vontade; o haxixe aniquila-a. O vinho é um suporte físico, o haxixe, uma arma para o suicídio. O vinho torna o homem bom e sociável; o haxixe isola-o. Um é laborioso por assim dizer; o outro essencialmente preguiçoso. Com efeito, para quê trabalhar, labutar, escrever, construir seja o que for, quando se pode alcançar o paraíso de uma só vez? Enfim, o vinho é para o povo que trabalha e merece bebê-lo. O haxixe pertence à classe dos prazeres solitários; é feito para os miseráveis ociosos. O vinho é útil, produz resultados frutificantes. O haxixe é inútil e perigoso.

   Apesar de considerar deveras pertinentes algumas das considerações, não pretendo explorar a visão dicotómica do autor de As Flores do Mal. Em excesso, e só nessa medida me interessa abordar a questão, ambas as substâncias elevam o indivíduo acima da individualidade, ou seja, transportam-no para um paraíso, ainda que artificial. 
   Lá está a exaltação da vontade, a qual podemos associar ao homem destemido. Mas a utilidade do vinho, em termos criativos, parece aqui desconsiderada face ao poder do haxixe. Tenho as minhas dúvidas, conquanto parta do princípio que toda a criação é gerada no intervalo do excesso, nesse momento de suspensão da loucura em que ao ímpeto a razão oferece o caminho que a loucura desbrava. 
   Apoio-me, por exemplo, nas inevitáveis Memórias de um Alcoólico, de um tal Jack London. Esclarece-nos logo no início da digressão:

O álcool era um gosto adquirido. Adquirido a custo. O álcool tinha sido uma coisa horrivelmente repugnante — mais enjoativa que qualquer outra. Mesmo agora, não lhe apreciava o gosto. Só bebia porque me excitava.

   Mais à frente acrescenta, generalizando:

Mas os homens não bebem pelo efeito que o álcool produz no corpo. Bebem pelo efeito no cérebro, que tem de se processar através do corpo; portanto, o corpo é que paga.

   Altamente problemática, esta generalização podia ser aplicada a tudo quanto metemos no corpo. No limite, refere-se ao próprio ar que respiramos. O corpo é que paga sempre, estamos fartos de o saber. 
   Pese embora a pobreza de espírito, London está certo quando se inquieta com o significado de uma vida cerceada pelas obrigações laborais. A morbidez advinda da constatação é como a inquietação que o álcool ajuda a esquecer no poema de Omar Khayyam. Por isso compreendemos o que quer dizer quando diz:

Os devotos de John Barleycorn são assim. Quando lhes bate à porta a boa sorte, bebem. Quando não têm sorte, bebem na esperança de boa sorte. Se a sorte é madrasta, bebem para esquecer. Se encontram um amigo, bebem. Se discutem com um amigo e perdem essa amizade, bebem. Se os seus assuntos amorosos são coroados de sucesso, ficam tão felizes que é obrigatório beberem. Se forem abandonados, bebem pela razão contrária. E se não têm nada para fazer, pois bem, tomam uma bebida, seguros de que, quando tiverem tomado um número suficiente de bebidas, as larvas começarão a rastejar nos seus cérebros e não terão mãos a medir com coisas para fazer. Quando estão sóbrios, querem beber; e, quando bebem, querem beber mais.

   Deflagrante taedium vitae, degenerando em vício, rotina, monotonia. Já nada consegue o álcool perante tamanha subserviência, obrigou o homem a ajoelhar-se perante a sua grandeza. Curvado, o bêbado justifica-se quando nos momentos de sobriedade já só lhe ocorre um verbo. Adivinhem qual. 
   Ínvios são os caminhos que podem levar-nos ao Senhor. Mas por que bebe o escritor? Que razão, que motivo, o leva a pegar na garrafa e a despejá-la copo ante copo? A mesma pergunta escutamos na trágica voz de Yvonne: «Porque é que ele beberá, é que eu gostava de saber». O cônsul, entregue ao «vício desgraçado», pouco tem para dizer sobre o assunto. Ou então diz mesmo tudo quanto há para dizer:

O Cônsul baixou finalmente os olhos. Quantas garrafas é que ele, desde então, bebera? Em quantos copos, em quantas garrafas se escondera ele a si mesmo, desde então? De repente, viu tudo isso: as garrafas de aguardente, de anis, de Xerés, de Higland Queen; os copos, uma babel de copos — empilhados numa torre enorme, como o fumo do comboio desse dia, erguida até ao céu; depois os copos caíam para a frente; despedaçavam-se, caíam pelos jardins do Generalife abaixo; as garrafas partiam-se — eram garrafas de vinho do Porto, de vinho tinto e branco, de Pernod, e de absinto, garrafas que se esmagavam, que eram atiradas para o lado e caíam, com uma pancada surda no chão, em parques, debaixo de bancos, de camas, de cadeiras de cinema, escondidas em gavetas nos consolados; garrafas de Clavados, que deixara cair e se haviam partido, ou estilhaçado em bocadinhos, atiradas para monturos, lançadas ao mar, ao Mediterrâneo, ao Cáspio, ao mar das Caraíbas, garrafas que flutuavam no oceano, uísques mortos nas terras altas do Atlântico — e agora, via-as, cheirava-as a todas desde o princípio — garrafas, garrafas, garrafas e copos, copos, copos, de bitter, de Dubonnet, de Falstaff, de uísque de centeio, de Johnny Walker, de Vieux Whisky Blanc Canadien, as dos aperitivos, dos digestivos, dos demis, dos dobles, dos noch ein Herr Obers, dos es glas Araks, dos tusen takes; eram garrafas, garrafas, lindas garrafas de tequila e cabaças, cabaças, cabaças, milhões de cabaças de belo mescal… O Cônsul mantinha-se muito quieto. A sua consciência parecia-lhe amortecida com o ruído da água. Batia de encontro à casa da madeira e gemia com a brisa espasmódica, concentrada nas nuvens tempestuosas que corriam por cima das árvores, e se viam através das janelas. Como é que ele, na realidade, poderia aspirar a encontrar-se a si mesmo, se numa dessas garrafas perdidas ou partidas, num desses copos, jazia para sempre, a chave solitária da sua identidade? Como é que ele podia agora retroceder e procurá-la, arrastando-se por entre os vidros partidos, por baixo dos eternos bares, por baixo dos oceanos?

   Palavra de Malcolm Lowry, in Debaixo do Vulcão (sublinhados meus). O tom trágico justifica-se pela ressonância de uma autenticidade indisfarçável. Àqueles que dizem ser o álcool libertador da verdadeira identidade dos homens, devíamos responder-lhes com Malcolm Lowry. Na verdade, a verdadeira identidade do homem que bebe escapa-se-lhe com a urina, com o vómito, fica perdida numa garrafa partida, é irrecuperável. 
   Nem coragem, nem verdadeira identidade, o álcool oferece àquele que julga nele e através dele se libertar. Distracção, talvez. Esquecimento, em absoluto. Mas o resto é tanga. Lowry percebeu-o como ninguém e, por isso, fez do Cônsul o mais dilacerante retrato possível de um homem a vomitar-se para dentro, a sufocar no vómito de um intratável desassossego. 
   Não menos visceral, mas muito mais directo e, porventura, menos dramático, o grande Charles Bukowski prefere oferecer-nos tratamento para a ressaca: «Foder é o melhor remédio para ressacas. Põe tudo a funcionar de novo». Ou não. A clareza das palavras trai, amiúde, a complexidade das questões:

É este o problema com a bebida, pensei, enquanto me servia dum copo. Se acontece algo de mau, bebe-se para esquecer; se acontece algo de bom, bebe-se para celebrar, e se nada acontece, bebe-se para que aconteça qualquer coisa.

   A citação, respigada no romance Mulheres, parece estar em sintonia com o London supracitado. Não obstante as semelhanças, algo os distingue: um deles evita juízos de valor. Só mais uma vez, adivinhem qual. 
   Por que bebem, então, os escritores? Para se libertarem? Para esquecer? Para se conhecerem melhor? Para terem coragem? Guy Debord dedica uma parte do seu invejável Panegírico ao assunto. Confessa:

No reduzido número das coisas que me agradaram, e que soube fazer bem, aquilo que por certo fiz melhor foi beber. Embora tenha lido muito, bebi mais. Escrevi muito menos do que a maior parte das pessoas que escrevem; mas bebi muito mais que a maioria das pessoas que bebem.

   E acrescenta:

Comecei por apreciar, como toda a gente, o efeito da ligeira embriaguez, e depois, rapidamente, apreciei o que fica para além da violenta ebriedade, ao transpor-se esse estádio: uma paz magnífica e terrível, o autêntico sabor da passagem do tempo.

   Valeria a pena citar todo o capítulo na íntegra, sugerindo-se aos interessados a leitura do livro (válida, mais que não seja, só por este capítulo). Indo longa a prosa, e faltando ainda o epílogo, convém sublinhar e acrescentar às demais razões aludidas aquele «autêntico sabor da passagem do tempo». 
   Pela parte que me toca, não bebo por outra razão. O álcool imprime na consciência do tempo uma noção pacificadora, desimportantiza o tempo, relativiza a efemeridade com a elevação do segundo ao estatuto de eternidade. É disso que gosto quando bebo, embora nesta matéria guarde entre os apontamentos da vida as palavras de Al Berto como das mais sábias que li sobre a questão. Com elas dou por terminada a prosa, enquanto encho mais um copo com o Cabeça de Toiro, reserva de 2011, Touriga-Nacional e Castelão:


Sempre bebi em quantidade, violentamente, para perder a noção de mundo, e do mundo. Nunca bebi por paixão, nem por desgosto de amor, não, nunca bebi dramaticamente. E no dia seguinte a ter bebido muito, é como se os sentidos e a memória tivessem sido passados a esfregona e lixívia. (in O Anjo Mudo)

2 comentários:

Gabriel Pedro disse...

Meu Caro,

Falta-lhe, pelo menos, um (autor e livro):
Venedikt Erofeev: "De Moscovo a Petuchki - a Lucidez de um Alcoólico Genial". Uma edição da Cotovia. Vai ver que sempre que procurar o Kremlin desagua naestação de Kurst:))

hmbf disse...

Grato. :-)