Ao longo da viagem, cruzamo-nos com certas personalidades
que são, em si mesmas, a prova do quanto vale andar por aqui a remoer sucessos
e insucessos, reconhecimento público, prebendas, elogios. Vale nada. Quem fixa
um nome? Com que critérios se impõe à história uma poesia em detrimento de
outra? Por que são reeditados, acarinhados, estudados certos escritores e não
outros? Quem determina a relevância de uma obra? Dir-me-ão que é o tempo, mas
dentro do tempo não palpita um coração nem um cérebro funciona. É tudo humano e
reles, deveras humano e reles.
O ano passado desenterrei dos arquivos António
de Navarro, propondo-me fazer com ele algo semelhante ao que um ano antes tinha
feito com António Pedro. Levei-os à praia, andámos de mão dada pelas ruas,
sentámo-nos numa esplanada a saborear palavras, café e aguardente. De António
Pedro relembrei o Protopoema da Serra D’Agra e Apenas uma Narrativa, obras que
levaram Jorge de Sena a falar do autor como «o primeiro português
distintivamente surrealista». Mas fui mais longe, ao colocá-lo aqui numa ponte
possível entre o modernismo e o surrealismo. Com António de Navarro talvez faça
sentido falar de um “segundo modernismo”, o qual foi reinventado pelas múltiplas
vozes da revista “Presença”. Entre elas, a de Navarro com Poema do Mar é uma
das mais inquietantes. Bastaria este Dístico para o confirmar, sendo igualmente
útil uma perspectiva mais alargada a partir de Metal Translúcido.
Mas nem os
elogios de Jorge de Sena nem as palavras de Adolfo Casais Monteiro chegaram
para conquistar um lugar de memória a este poeta:
Pouco mais que um desconhecido, tendo uma obra
extensíssima quase inédita, da qual os seus raros livros publicados nem sempre
dão a melhor imagem, António de Navarro é talvez, de todos os poetas
portugueses contemporâneos, aquele que está mais longe de ter encontrado a
audiência que o melhor da sua poesia lhe faria merecer (…)
Ultimamente, o nome de Afonso Duarte tem aparecido
amiúde. Serafim Ferreira dedicou-lhe um texto memorável neste Sombras e Lugares, surgindo Afonso Duarte regularmente na companhia de outros poetas
como figura influente. Jorge de Sena cita-o a propósito de João José Cochofel
ou Papiniano Carlos, sendo que Óscar Lopes e A. J. Saraiva não deixam de o
referir quando escrevem sobre Carlos de Oliveira. Quem lê hoje Afonso Duarte (n.
1884 - m. 1958)? Onde andam os seus livros? Quem foi, o que fez, por que a ele
se referem tantos poetas? Quem ou o que o calou?
CALAI
Calai os versos abstractos
e a mansidão dos olhos que têm os bois pacatos.
Calai tanto, tanto espírito na terra
e a cristaníssima paz que nos faz guerra.
Calai, promessas d’anjo, o céu sublime,
quando as mãos, cheias de oiro, trazem máscaras de crime.
Calai loas d’amor às crianças maltrapilhas
que esses farrapos d’alma não lhes cobrem as virilhas.
Calai as lágrimas à beira dos enfermos:
prefiro a solidão que é soluço nos ermos.
Calai, palhinhas de Jesus, que sois ai de quem ama:
paz na Terra e no Céu: ao cristão, ao judeu, e à
gentílica moirama.
Calai-vos, bêbados aos bordos nas estradas:
para matar tristezas, Nª Sª das Dores com suas sete
espadas.
Coimbra, 1935
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