terça-feira, 26 de janeiro de 2016

COMEÇAR POR AQUI

Ao longo da viagem, cruzamo-nos com certas personalidades que são, em si mesmas, a prova do quanto vale andar por aqui a remoer sucessos e insucessos, reconhecimento público, prebendas, elogios. Vale nada. Quem fixa um nome? Com que critérios se impõe à história uma poesia em detrimento de outra? Por que são reeditados, acarinhados, estudados certos escritores e não outros? Quem determina a relevância de uma obra? Dir-me-ão que é o tempo, mas dentro do tempo não palpita um coração nem um cérebro funciona. É tudo humano e reles, deveras humano e reles. 
O ano passado desenterrei dos arquivos António de Navarro, propondo-me fazer com ele algo semelhante ao que um ano antes tinha feito com António Pedro. Levei-os à praia, andámos de mão dada pelas ruas, sentámo-nos numa esplanada a saborear palavras, café e aguardente. De António Pedro relembrei o Protopoema da Serra D’Agra e Apenas uma Narrativa, obras que levaram Jorge de Sena a falar do autor como «o primeiro português distintivamente surrealista». Mas fui mais longe, ao colocá-lo aqui numa ponte possível entre o modernismo e o surrealismo. Com António de Navarro talvez faça sentido falar de um “segundo modernismo”, o qual foi reinventado pelas múltiplas vozes da revista “Presença”. Entre elas, a de Navarro com Poema do Mar é uma das mais inquietantes. Bastaria este Dístico para o confirmar, sendo igualmente útil uma perspectiva mais alargada a partir de Metal Translúcido
Mas nem os elogios de Jorge de Sena nem as palavras de Adolfo Casais Monteiro chegaram para conquistar um lugar de memória a este poeta:

Pouco mais que um desconhecido, tendo uma obra extensíssima quase inédita, da qual os seus raros livros publicados nem sempre dão a melhor imagem, António de Navarro é talvez, de todos os poetas portugueses contemporâneos, aquele que está mais longe de ter encontrado a audiência que o melhor da sua poesia lhe faria merecer (…)

Ultimamente, o nome de Afonso Duarte tem aparecido amiúde. Serafim Ferreira dedicou-lhe um texto memorável neste Sombras e Lugares, surgindo Afonso Duarte regularmente na companhia de outros poetas como figura influente. Jorge de Sena cita-o a propósito de João José Cochofel ou Papiniano Carlos, sendo que Óscar Lopes e A. J. Saraiva não deixam de o referir quando escrevem sobre Carlos de Oliveira. Quem lê hoje Afonso Duarte (n. 1884 - m. 1958)? Onde andam os seus livros? Quem foi, o que fez, por que a ele se referem tantos poetas? Quem ou o que o calou?

CALAI

Calai os versos abstractos
e a mansidão dos olhos que têm os bois pacatos.

Calai tanto, tanto espírito na terra
e a cristaníssima paz que nos faz guerra.

Calai, promessas d’anjo, o céu sublime,
quando as mãos, cheias de oiro, trazem máscaras de crime.

Calai loas d’amor às crianças maltrapilhas
que esses farrapos d’alma não lhes cobrem as virilhas.

Calai as lágrimas à beira dos enfermos:
prefiro a solidão que é soluço nos ermos.

Calai, palhinhas de Jesus, que sois ai de quem ama:
paz na Terra e no Céu: ao cristão, ao judeu, e à gentílica moirama.

Calai-vos, bêbados aos bordos nas estradas:
para matar tristezas, Nª Sª das Dores com suas sete espadas.



Coimbra, 1935

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