segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

HÁ VIDAS ASSIM

Há vidas assim, desaparecem sem que delas tenhamos notícia. Só o acaso nos recorda o rasto que deixaram, e pelo rasto vamos em busca de nada. Talvez mais uma demonstração do quão vã é aquela vaidade que pressupõe eternidade onde tudo é efémero. Foi por acaso que soube da morte de Serafim Ferreira (n. 1939 - m. 2015), ao abrir Editor Contra e aí me deparar com a notícia. Que tenha dado por isso, ninguém se lhe referiu nos tradicionais obituários que é costume enaltecerem as virtudes dos mortos e omitir-lhes os vícios que praticaram em vida. Excepção feita a Baptista Bastos, que numa crónica do Jornal de Negócios, datada de 6 de Março de 2015, recorda: «O último grande militante da literatura, e da cultura de uma forma geral, morreu na quarta-feira. Chamava-se Serafim Ferreira, tinha 75 anos, e passou a vida a falar dos outros, a escrever dos outros, a promover os outros». Há vidas assim. Esta vocação para falar dos outros ficou patente em muitos dos seus livros, entre os quais Sombras e Lugares (Editorial Escritor, Outubro de 1993) surge agora com inquietante actualidade. Nesse livro, o autor de Noite de Libertação (1960) entra em diálogo directo com os mortos. Com os seus mortos. As dedicatórias são, talvez, testemunho de afinidades e proximidades (Ramiro Teixeira, Vergílio Ferreira, Raul de Carvalho, Herberto Helder, António Fernando, Alfredo Martins, Luís Pignatelli, António Augusto Menano, Albano Martins, Luís de Miranda Rocha), mas a escolha dos interlocutores sugere algo mais. Motivado pelos lugares e pelas situações, Serafim Ferreira divaga e delira em diálogo directo com Cesário Verde, Raul Brandão, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Ângelo de Lima, Almada Negreiros, Manuel Laranjeira, Afonso Duarte, Raul de Carvalho e Aureliano Lima. O autor chama-lhes ficções, mas estas evocações extravasam o domínio ficcional. Penetram a biografia no que ela tem de mais profundo e existencial, não sendo ocasional a quase omnipresença de um pendor desassossegado que tem na solidão e no abandono as chaves mestras para o entendimento de certo desencanto que, perdoem-me, oferece à vida daquele que cria o encanto da criação. Cesário morreu, aos 31 anos, tuberculoso e ignorado. Não viu sequer o seu livro publicado em vida. A desilusão foi companheira para a vida e para a morte. Raul Brandão, o autor de Húmus (1917), foi em si mesmo a personificação de um certo sentir português, melancólico e inquieto, desamparado. O Álvaro de Campos de Fernando Pessoa  oferece a Serafim Ferreira a imagem possível de um país que é o nosso: «— Portugal é uma plutocracia financeira de espécie asinina. É, como todos os países modernos, excepto, talvez, a Itália, uma oligarquia de simuladores. Mas é uma oligarquia de simuladores provincianos, pouco industriados na própria histeria postiça. Ninguém já engana ninguém — o que é tristíssimo — na terra natal do Conto do Vigário» (p. 50). Atrevam-se a definir quem aqui fala. Logo a seguir, aparece-nos Mário de Sá-Carneiro. Matou-se antes de completar 26 anos de idade. Sobre Ângelo de Lima, Serafim Ferreira ensaia um testemunho para guardar entre os melhores que conhecemos acerca do poeta louco de Rilhafoles. A poesia enquanto refúgio, o desespero, uma profunda desilusão, não são marcas de um homem só, muito menos de um único homem só tomado por louco. São a marca essencial daquele que cria. Que loucura é esta nossa que, acossados pelo tédio, lhe declaramos guerra como loucos, desesperados da alegria que a todo o momento a desilusão nos furta? Há, pois, entre Serafim Ferreira e os seus interlocutores uma sombria cumplicidade, uma identificação íntima que o sentido prático da vida se encarregará de ora disfarçar, ora evidenciar. Com Almada faz um ajuste de contas. Manuel Laranjeira, outro que se suicidou na flor da maturidade (tinha 35 anos), é o rosto do tédio assaltado pela depressão. Afonso Duarte «simbolizava, para quem desejava ser aprendiz de feiticeiro, a bandeira da coerência e do civismo, o exemplo de partilhar com os outros, mesmo no arrepio da doença e da perseguição política, esse sonho de liberdade gritada e revivificada na dorida experiência de tantos dissabores e martírios» (p. 121). Ficções, pois bem, mas também biografia e memória, a vida própria repassada como uma espécie de Frankenstein composto de valores e de atitudes, de gestos e de inclinações, de predisposições morais e de tendências existenciais, de paixões e de medos, de tudo quanto, ao fim e ao cabo, descamba em solidão e esquecimento. Mas uma solidão que nunca está definitivamente só, por se fazer acompanhar, lá está, das sombras que a revisitam através dos lugares que as sugestionam. O texto acerca de Raul de Carvalho é exemplar nesse sentido, também por nele ser evocado o lugar mais próximo da sombra: «A casa do poeta é quase sempre (nos casos verdadeiros de ser poeta) o reflexo mais exacto da sua imagem: sem ele querer, assim constrói (e se constrói) o «círculo» em que se movimenta, onde faz entrar os seus fantasmas e com eles se entende, quando preenche com sangue, raiva e desespero o papel em branco da própria amargura» (p. 132). De reflexos de sombras, se enche, portanto, este belo livro de Serafim Ferreira, sobre cuja perda, além de Baptista Bastos, conhecemos apenas mais um testemunho, o que Júlio Conrado assinou a 30 de Julho de 2015: «Em certo sentido, Serafim Ferreira era a réplica nortenha do lisboeta João Gaspar Simões enquanto presenças constantes e interventoras na cena literária doméstica, e não raro as suas opiniões sibilinas exasperaram alguns monstros sagrados do neo-realismo ou aparentados, dos quais recolheu a sua ração de ódio e vindicta». Há vidas assim.

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