Há vidas assim, desaparecem sem que delas tenhamos
notícia. Só o acaso nos recorda o rasto que deixaram, e pelo rasto vamos em
busca de nada. Talvez mais uma demonstração do quão vã é aquela vaidade que
pressupõe eternidade onde tudo é efémero. Foi por acaso que soube da morte de
Serafim Ferreira (n. 1939 - m. 2015), ao abrir Editor Contra e aí me deparar com a notícia. Que
tenha dado por isso, ninguém se lhe referiu nos tradicionais obituários que é
costume enaltecerem as virtudes dos mortos e omitir-lhes os vícios que praticaram em vida. Excepção
feita a Baptista Bastos, que numa crónica do Jornal de Negócios, datada de 6 de
Março de 2015, recorda: «O último grande militante da literatura, e da cultura de uma forma geral, morreu na quarta-feira. Chamava-se Serafim Ferreira, tinha 75 anos, e passou a vida a falar dos outros, a escrever dos outros, a promover os outros». Há vidas assim. Esta vocação para falar dos outros ficou patente em muitos dos seus livros, entre os
quais Sombras e Lugares (Editorial Escritor, Outubro de 1993) surge agora com inquietante
actualidade. Nesse livro, o autor de Noite de Libertação (1960) entra em
diálogo directo com os mortos. Com os seus mortos. As dedicatórias são, talvez, testemunho de afinidades e proximidades (Ramiro Teixeira, Vergílio Ferreira, Raul de
Carvalho, Herberto Helder, António Fernando, Alfredo Martins, Luís Pignatelli,
António Augusto Menano, Albano Martins, Luís de Miranda Rocha), mas a escolha
dos interlocutores sugere algo mais. Motivado pelos lugares e pelas situações,
Serafim Ferreira divaga e delira em diálogo directo com Cesário Verde, Raul
Brandão, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Ângelo de Lima, Almada
Negreiros, Manuel Laranjeira, Afonso Duarte, Raul de Carvalho e Aureliano Lima.
O autor chama-lhes ficções, mas estas evocações extravasam o domínio ficcional.
Penetram a biografia no que ela tem de mais profundo e existencial, não
sendo ocasional a quase omnipresença de um pendor desassossegado que tem na
solidão e no abandono as chaves mestras para o entendimento de certo desencanto
que, perdoem-me, oferece à vida daquele que cria o encanto da criação. Cesário
morreu, aos 31 anos, tuberculoso e ignorado. Não viu sequer o seu livro
publicado em vida. A desilusão foi companheira para a vida e para a morte. Raul
Brandão, o autor de Húmus (1917), foi em si mesmo a personificação de um certo
sentir português, melancólico e inquieto, desamparado. O Álvaro de Campos de
Fernando Pessoa oferece a Serafim Ferreira a imagem
possível de um país que é o nosso: «— Portugal é uma plutocracia financeira de
espécie asinina. É, como todos os países modernos, excepto, talvez, a Itália,
uma oligarquia de simuladores. Mas é uma oligarquia de simuladores
provincianos, pouco industriados na própria histeria postiça. Ninguém já engana
ninguém — o que é tristíssimo — na terra natal do Conto do Vigário» (p. 50).
Atrevam-se a definir quem aqui fala. Logo a seguir, aparece-nos Mário de
Sá-Carneiro. Matou-se antes de completar 26 anos de idade. Sobre Ângelo de
Lima, Serafim Ferreira ensaia um testemunho para guardar entre os melhores
que conhecemos acerca do poeta louco de Rilhafoles. A poesia enquanto refúgio,
o desespero, uma profunda desilusão, não são marcas de um homem só, muito menos
de um único homem só tomado por louco. São a marca essencial daquele que cria. Que loucura é esta nossa que, acossados
pelo tédio, lhe declaramos guerra como loucos, desesperados da alegria que a
todo o momento a desilusão nos furta? Há, pois, entre Serafim Ferreira e os seus
interlocutores uma sombria cumplicidade, uma identificação íntima que o sentido
prático da vida se encarregará de ora disfarçar, ora evidenciar. Com Almada faz
um ajuste de contas. Manuel Laranjeira, outro que se suicidou na flor da maturidade
(tinha 35 anos), é o rosto do tédio assaltado pela depressão. Afonso Duarte
«simbolizava, para quem desejava ser aprendiz de feiticeiro, a bandeira da coerência
e do civismo, o exemplo de partilhar com os outros, mesmo no arrepio da doença
e da perseguição política, esse sonho de liberdade gritada e revivificada na
dorida experiência de tantos dissabores e martírios» (p. 121). Ficções, pois bem,
mas também biografia e memória, a vida própria repassada como uma espécie de
Frankenstein composto de valores e de atitudes, de gestos e de inclinações, de
predisposições morais e de tendências existenciais, de paixões e de medos, de tudo
quanto, ao fim e ao cabo, descamba em solidão e esquecimento. Mas uma solidão
que nunca está definitivamente só, por se fazer acompanhar, lá está, das
sombras que a revisitam através dos lugares que as sugestionam. O texto acerca
de Raul de Carvalho é exemplar nesse sentido, também por nele ser evocado o
lugar mais próximo da sombra: «A casa do poeta é quase sempre (nos casos
verdadeiros de ser poeta) o reflexo mais exacto da sua imagem: sem ele querer,
assim constrói (e se constrói) o «círculo» em que se movimenta, onde faz entrar
os seus fantasmas e com eles se entende, quando preenche com sangue, raiva e
desespero o papel em branco da própria amargura» (p. 132). De reflexos de
sombras, se enche, portanto, este belo livro de Serafim Ferreira, sobre cuja
perda, além de Baptista Bastos, conhecemos apenas mais um testemunho, o que
Júlio Conrado assinou a 30 de Julho de 2015: «Em certo sentido, Serafim
Ferreira era a réplica nortenha do lisboeta João Gaspar Simões enquanto
presenças constantes e interventoras na cena literária doméstica, e não raro as
suas opiniões sibilinas exasperaram alguns monstros sagrados do neo-realismo ou
aparentados, dos quais recolheu a sua ração de ódio e vindicta». Há vidas
assim.
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