O nome de Leonor de Almeida (n. 1915 - ?) chega-nos de um
tempo em que rareavam vozes poéticas no feminino, sendo por isso ainda mais
estranho o desconhecimento, a completa ignorância e esquecimento a que sujeitaram
a sua poesia. Tudo o que sobre ela lemos e sabemos foi fixado pela participação
em duas importantes antologias de poesia portuguesa: a Antologia de Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica (Afrodite, 1966), de Natália Correia, e a
Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (Moraes, 3.ª edição, 1971), de Maria Alberta
Menéres e E. M. de Melo e Castro. Sobram-nos os livros, entre os quais Caminhos
frios (Coimbra Editora, 1947) foi o primeiro. Outros livros publicados pela
autora foram Luz do Fim (1950), Rapto (1953) e Terceira Asa (1960), encontrando-se
também o seu nome associado ao de Alexandre Pinheiro Torres na tradução, para a
Livros do Brasil, de A vida quotidiana na Babilónia e na Assíria (1961), de
Georges Coutenau.
O silêncio abatido sobre esta obra é tanto mais incompreensível
quanto se trata de safra raríssima e de qualidade insuspeita, obrigando-nos,
mais uma vez, a colocar aquela tão desagradável questão acerca dos méritos do
tempo na preservação de um labor. A verdade é que o tempo não tem mérito algum
e aos homens, seus escravos, resta enterrarem-se uns aos outros enquanto por
vaidades mesquinhas vão deixando, aqui e acolá, alguns dedos de fora da cova
que permitam suspeitar haver alguém, na continuidade do dedo, debaixo da terra.
Fosse Caminhos frios um livro vulgar, estaríamos conversados. Mas não é. Daí que
seja pertinente questionar o porquê de ter sido completamente rasurado da
História da Literatura Portuguesa.
Leonor de Almeida teria trinta e dois anos quando se
estreou em livro, sendo a estreia marcada por uma dedicatória em memória de sua
mãe. Portanto, não estamos a falar de uma estreia em idade juvenil. Estamos face
a uma voz amadurecida pela idade e por uma sempre trágica circunstância de
perda na vida pessoal. Nos seus instantes mais sentimentais, essa perda
revela-se pungente na singularidade com que sublinha uma angústia íntima e
inquietante:
Se tu ainda falasses…
Como eu queria, Mãe, que falasses!
É cratera este desejo: que contasses
Tudo, tudo desse dia em que nasci!
Talvez um pormenor qualquer em Ti,
No ambiente do quarto, na atmosfera fora,
Um sinal nas coisas, nos seres dessa hora…
Explicasse à minha angústia de Hoje
Porque tanto Sonho me toca e me foge!
A utilização de maiúsculas em palavras-chave, não sendo
uma dominante ao longo do livro, confere a alguns poemas um pendor simbolista que
o ambiente crepuscular se encarrega de reafirmar, transportando o sentimento
para um lugar onde se perspectiva mais amplamente toda uma concepção
melancólica da existência. Não por acaso, o poema que antecede este aqui supracitado
intitula-se, justamente, Melancolia, sendo recorrentes outros títulos, tais
como Marasmo ou Neurastenia, onde os estados de alma surgem verbalizados com
uma oratória nada simbólica. Não obstante também não o ser directa e imediata,
pois se há marca transversal nos poemas de Caminhos frios essa marca é a de uma
ambiguidade sentimental que torna alguns versos obscuros, no sentido em que não
é neles directamente perceptível a razão de ser dos contrastes que opõem o amor
à morte, a luz à sombra, um erotismo quase explícito aos ambientes frios e
distantes de quem anseia pela satisfação do desejo. Veja-se como num dos oito sonetos
presentes no livro a crueldade do sentimento acaba dissimulada pelo recurso a
imagens quiméricas e até algo grotescas:
Libertação
Agrilhoada em rígidas correntes,
No Circo Grande às feras eu servia:
O leão disputava-me nos dentes
Ao tigre que, nas garras, me exibia.
Nos quadris, enroscadas, as serpentes,
Das úlceras chupavam-me a sangria…
Palhaços davam gritos estridentes.
Num gargalhar alarve o povo ria.
Os grilhões, revoltada, estilhacei!
Na floresta abscôndita cavei
Sulco fundo, com mãos febris, inermes…
Minha Libertação quer enterrar-se
Naquele abraço de húmus: terra a dar-se
Ao amor das raízes e dos germes!
A libertação corresponde, pois, a um acasalamento de Eros
com Thanatos, acasalamento esse constante em todo o caminho percorrido num
livro desde o início estigmatizado pela morte de quem se ama. O erotismo de alguns
destes poemas é, deste modo, mais complexo do que possa aparentar a uma leitura
apressada, na medida em que não provém (única e exclusivamente) de uma ordem
sexual. As atmosferas por vezes lúgubres, as imagens gélidas, sombrias, de uma
«frialdade lacerante», os fantasmas que se mostram aqui e acolá, desbravam caminho
para um desejo adiado pela espera. «Fantasmas do meu ânimo, vinde abrir / Todas
as janelas… E que a vida passe!» As janelas e as portas fechadas que o sujeito enuncia
repetidamente são a vida ela mesma, enclausurada no tempo dos relógios,
aguardando pela libertação, pela nudez, pela ânsia consumada num desejo de
morte fundado pelos sentimentos de perda, desamparo e ausência. No fundo, são o
Palco da vida
Levem-me os braceletes, os anéis,
Levem-me os chapins brancos e a saia folhada,
E o corpete bordado…
Levem-me tudo!
Nem véus sequer: não quero nada!
Quero dansar a minha dansa toda nua!
Ó brisa, minha irmã!
Com a tua gadanha de cristal
Corre-me os montes e trás-me a passarada!
Que venha orquestra para o meu bailado!
Tu, árvore, que cobres o mundo da rua,
Abre a minha janela
De par em par… como era dantes!
E pelas tuas folhas, dedos meigos,
Peneira, sobre mim, o sol em diamantes!
Quero bailar o meu bailado,
À volta… À volta…
Minha carne estrangeira!
Tiraram-me as roupagens, mas a minha dansa
É para dansar toda nua,
Cabelo à solta,
Nesta solitária trapeira,
Meu mágico tablado!
Os sonhos mortos, são apinhada plateia,
E os sonhos vivos, rebentam girândolas de luz…
E ardem feéricos cenários
No velho palco, quente e almofadado
Do meu hálito que não cansa!...
E a minha brônzea vontade, com as mãos roxas,
Vestida de heroína de todas as lendas,
Estende verdes e doiradas colchas
No meu reino ignorado!
Corre o sangue dos pés que cheira a louros,
E cheira a incenso o suor que cai, do peito e ventre,
Sobre o meu sexo amordaçado…
Mas, num heróico frenesim,
Eu bailo sempre… bailo sempre
O meu rubro bailado!
. . .
. . . . .
. . .
. . .
. . . .
Árvore! porque não deitas mais diamantes sobre mim?!...
Vais cobrir-me de pérolas de luar?!...
Ah! como eu queria agora um sono de criança!
Árvore: pede à noite que venha afiar
Tuas navalhas prateadas,
E mata, mata a minha dansa!
Leonor de Almeida, in Caminhos frios, Coimbra
Editora, 1947.
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