quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

CAMINHOS FRIOS

O nome de Leonor de Almeida (n. 1915 - ?) chega-nos de um tempo em que rareavam vozes poéticas no feminino, sendo por isso ainda mais estranho o desconhecimento, a completa ignorância e esquecimento a que sujeitaram a sua poesia. Tudo o que sobre ela lemos e sabemos foi fixado pela participação em duas importantes antologias de poesia portuguesa: a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Afrodite, 1966), de Natália Correia, e a Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (Moraes, 3.ª edição, 1971), de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro. Sobram-nos os livros, entre os quais Caminhos frios (Coimbra Editora, 1947) foi o primeiro. Outros livros publicados pela autora foram Luz do Fim (1950), Rapto (1953) e Terceira Asa (1960), encontrando-se também o seu nome associado ao de Alexandre Pinheiro Torres na tradução, para a Livros do Brasil, de A vida quotidiana na Babilónia e na Assíria (1961), de Georges Coutenau.
O silêncio abatido sobre esta obra é tanto mais incompreensível quanto se trata de safra raríssima e de qualidade insuspeita, obrigando-nos, mais uma vez, a colocar aquela tão desagradável questão acerca dos méritos do tempo na preservação de um labor. A verdade é que o tempo não tem mérito algum e aos homens, seus escravos, resta enterrarem-se uns aos outros enquanto por vaidades mesquinhas vão deixando, aqui e acolá, alguns dedos de fora da cova que permitam suspeitar haver alguém, na continuidade do dedo, debaixo da terra. Fosse Caminhos frios um livro vulgar, estaríamos conversados. Mas não é. Daí que seja pertinente questionar o porquê de ter sido completamente rasurado da História da Literatura Portuguesa.
Leonor de Almeida teria trinta e dois anos quando se estreou em livro, sendo a estreia marcada por uma dedicatória em memória de sua mãe. Portanto, não estamos a falar de uma estreia em idade juvenil. Estamos face a uma voz amadurecida pela idade e por uma sempre trágica circunstância de perda na vida pessoal. Nos seus instantes mais sentimentais, essa perda revela-se pungente na singularidade com que sublinha uma angústia íntima e inquietante:

Se tu ainda falasses…

Como eu queria, Mãe, que falasses!
É cratera este desejo: que contasses
Tudo, tudo desse dia em que nasci!
Talvez um pormenor qualquer em Ti,
No ambiente do quarto, na atmosfera fora,
Um sinal nas coisas, nos seres dessa hora…
Explicasse à minha angústia de Hoje
Porque tanto Sonho me toca e me foge!

A utilização de maiúsculas em palavras-chave, não sendo uma dominante ao longo do livro, confere a alguns poemas um pendor simbolista que o ambiente crepuscular se encarrega de reafirmar, transportando o sentimento para um lugar onde se perspectiva mais amplamente toda uma concepção melancólica da existência. Não por acaso, o poema que antecede este aqui supracitado intitula-se, justamente, Melancolia, sendo recorrentes outros títulos, tais como Marasmo ou Neurastenia, onde os estados de alma surgem verbalizados com uma oratória nada simbólica. Não obstante também não o ser directa e imediata, pois se há marca transversal nos poemas de Caminhos frios essa marca é a de uma ambiguidade sentimental que torna alguns versos obscuros, no sentido em que não é neles directamente perceptível a razão de ser dos contrastes que opõem o amor à morte, a luz à sombra, um erotismo quase explícito aos ambientes frios e distantes de quem anseia pela satisfação do desejo. Veja-se como num dos oito sonetos presentes no livro a crueldade do sentimento acaba dissimulada pelo recurso a imagens quiméricas e até algo grotescas:

Libertação

Agrilhoada em rígidas correntes,
No Circo Grande às feras eu servia:
O leão disputava-me nos dentes
Ao tigre que, nas garras, me exibia.

Nos quadris, enroscadas, as serpentes,
Das úlceras chupavam-me a sangria…
Palhaços davam gritos estridentes.
Num gargalhar alarve o povo ria.

Os grilhões, revoltada, estilhacei!
Na floresta abscôndita cavei
Sulco fundo, com mãos febris, inermes…

Minha Libertação quer enterrar-se
Naquele abraço de húmus: terra a dar-se
Ao amor das raízes e dos germes!

A libertação corresponde, pois, a um acasalamento de Eros com Thanatos, acasalamento esse constante em todo o caminho percorrido num livro desde o início estigmatizado pela morte de quem se ama. O erotismo de alguns destes poemas é, deste modo, mais complexo do que possa aparentar a uma leitura apressada, na medida em que não provém (única e exclusivamente) de uma ordem sexual. As atmosferas por vezes lúgubres, as imagens gélidas, sombrias, de uma «frialdade lacerante», os fantasmas que se mostram aqui e acolá, desbravam caminho para um desejo adiado pela espera. «Fantasmas do meu ânimo, vinde abrir / Todas as janelas… E que a vida passe!» As janelas e as portas fechadas que o sujeito enuncia repetidamente são a vida ela mesma, enclausurada no tempo dos relógios, aguardando pela libertação, pela nudez, pela ânsia consumada num desejo de morte fundado pelos sentimentos de perda, desamparo e ausência. No fundo, são o

Palco da vida

Levem-me os braceletes, os anéis,
Levem-me os chapins brancos e a saia folhada,
E o corpete bordado…
Levem-me tudo!
Nem véus sequer: não quero nada!
Quero dansar a minha dansa toda nua!

Ó brisa, minha irmã!
Com a tua gadanha de cristal
Corre-me os montes e trás-me a passarada!
Que venha orquestra para o meu bailado!

Tu, árvore, que cobres o mundo da rua,
Abre a minha janela
De par em par… como era dantes!
E pelas tuas folhas, dedos meigos,
Peneira, sobre mim, o sol em diamantes!

Quero bailar o meu bailado,
À volta… À volta…
Minha carne estrangeira!
Tiraram-me as roupagens, mas a minha dansa
É para dansar toda nua,
Cabelo à solta,
Nesta solitária trapeira,
Meu mágico tablado!

Os sonhos mortos, são apinhada plateia,
E os sonhos vivos, rebentam girândolas de luz…
E ardem feéricos cenários
No velho palco, quente e almofadado
Do meu hálito que não cansa!...
E a minha brônzea vontade, com as mãos roxas,
Vestida de heroína de todas as lendas,
Estende verdes e doiradas colchas
No meu reino ignorado!

Corre o sangue dos pés que cheira a louros,
E cheira a incenso o suor que cai, do peito e ventre,
Sobre o meu sexo amordaçado…
Mas, num heróico frenesim,
Eu bailo sempre… bailo sempre
O meu rubro bailado!
.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .

Árvore! porque não deitas mais diamantes sobre mim?!...

Vais cobrir-me de pérolas de luar?!...

Ah! como eu queria agora um sono de criança!
Árvore: pede à noite que venha afiar
Tuas navalhas prateadas,
E mata, mata a minha dansa!



Leonor de Almeida, in Caminhos frios, Coimbra Editora, 1947.

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