Em The Hateful Eight/Os Oito Odiados (2015), Quentin
Tarantino (n. 1963) volta a apostar na figura clássica do “bounty hunter”
(caçador de prémios) para construir uma história acerca do desmoronamento social de uma nação. Assistir a um filme de Tarantino é como assistir à implosão de
um edifício, o espectador aguarda o momento da detonação para poder deliciar-se
com o espectáculo da derrocada. É assim desde Reservoir Dogs/Cães Danados
(1992), e se em algum momento fomos tocados pela redenção nos seus filmes isso
foi apenas para nos certificarmos de que depois da bonança vem a tempestade. Essa tal bonança é meramente estética, pode resumir-se ao plano do Cristo
crucificado que aparece logo no início do seu mais recente western. Havendo
nisto uma perspectiva pessimista, ela é de um pessimismo divertido, ou seja,
fundamenta-se naquele tipo de humor negro que fez as delícias dos surrealistas
e alimenta muita da melhor criação artística que a humanidade deu ao mundo. Os
Oito Odiados resulta, pois, como uma Divina Comédia que arrasta os seus protagonistas do
Inferno gélido de uma tempestade no Wyoming para um purgatório sob a forma de
retrosaria. Apoiado numa mão cheia (e mais uns dedos) de actores que oferecem
garantias a partir de experiências anteriores, e embalado pela música de Ennio
Morricone, maestro cujas composições definiram certo tipo de western, Tarantino
explora novamente aquilo que melhor o define: diálogos. Do leque de actores
fetiche, sublinhamos Samuel L. Jackson (Pulp Fiction, Jackie Brown, Django
Unchained) no papel de “bounty hunter” implacável, major reformado do Exército
da União, perseguido e odiado pelos sulistas que torturou e trucidou sem dó nem
piedade. Do lado oposto, com a farda cinzenta dos Estados Confederados, o velho
Bruce Dern (Django Unchained) é a figura perfeita de um general derrotado e
acabado, carregando no rosto cerrado um ódio racista, permanecendo todo o filme
sentado à beira de uma lareira. É o homem que já não se põe de pé. Entre estes,
Tim Roth (Reservoir Dogs, Pulp Fiction), Michael Madsen (Reservoir Dogs, Kill
Bill) e Walton Goggins (Django Unchained) têm cada um as suas particularidades,
exageradas pelo olhar de um realizador que é também exímio caricaturista. Kurt
Russell (Death Proof) é outra das figuras proeminentes, interpreta o “bounty
hunter” desconfiado e ambicioso, tão desconfiado que por duas ocasiões, numa
delas fatalmente, acaba traído por uma imprópria ingenuidade. É a figura
pessimista por excelência. Nas duas únicas ocasiões em que manifesta algum tipo
de crença, falha. Levado ao pormenor, o Jesus Cristo crucificado do início,
enterrado na neve, é bem a imagem de uma fé e de uma esperança congeladas, que saúda
os amantes de finais felizes com um irónico bem-vindos ao Inferno. Exímio a
filmar diálogos, o realizador de Pulp Fiction (1994) é igualmente um mestre da
prestidigitação. Daí que tanto Django Libertado (2012) como Os Oito Odiados
(2015), inserindo-se no universo de um género cinematográfico essencialmente
norte-americano e popular, rompem com o paradigma do western transportando-nos
para dimensões simbólicas onde a atitude palavrosa e desbocada das personagens
confere uma estranha dimensão literária a cada uma das sequências. Dessa
dimensão ressalta um tratado impiedoso sobre as fracturas de uma América
dividida racialmente, mal resolvida na sua violenta história de uma justiça alicerçada
na vingança, uma justiça imoral, afundando-se num pântano de esquemas e de manigâncias,
de desconfianças e de ludíbrios, onde os fracos sobrevivem como ratos e a os
fortes acabam inevitavelmente traídos pelo egocentrismo que os caracteriza.
Tudo isto é genial, pelo que não admira a controvérsia.
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