Sou a terra do mar impune: a extirpação do negro cósmico
e o adormecimento mágico da lava nos seus estertores seculares.
Sou a extremidade fértil da imensidão plana do tempo, a genitalidade larvar
que faz o belo das flores e o canto surdo das filosofias do irracional.
Mais que o Ocidente sou a Terra do Oriente Distante,
da luz aberta às viagens longínquas,
a terra de passagem como o desejo de um porto,
de um reduto intensamente íntimo e avesso à claridade.
Sou a ilusão do movimento ascensional do mundo
e o cérebro telúrico que pensa a complexidade das sombras,
a ordem da deriva dos solos
e todas as catastróficas violações de todas as ordens.
Sou a arquitectura dos jardins desfeitos.
O amor à degradação depois do êxtase.
O pântano do retorno
ao promíscuo incesto
violento e criador
entre a Ásia e o mar
cujo aborto triunfa.
Fazem-se noites de uma extrema ductilidade
que desculpa a ignorância mais selvática.
As palavras então murmuradas são intensamente verdadeiras e reconciliadoras.
As tribos do norte chegaram
como se as procurassem
e logo se descobriram encurraladas.
Combatiam à semelhança do mar,
bravamente fechadas numa loucura, circular e mansa
como o apagamento dos trilhos numa paisagem cercada
de paraísos invisíveis.
É sempre inútil falar de identidade nacional - como se a noção da substância
se partilhasse, mero efeito de rugosidade no fim da Europa.
Em mim se concentraram os que se queriam esconder,
os escorraçados de um mundo com pujança disputado,
os amantes incomodados com a plana transparência do ar,
todos os que se infiltraram brandos para, num contágio renhido com as ondas,
iniciarem umbilicais navegações em torno da esperança
de outra nação eternamente em levitação poética.
Gente imóvel para sempre submersa,
para sempre perplexa com a variedade do mundo:
os trajectos inglórios,
as incansáveis renúncias no auge das colheitas,
a festa, o vinho,
a orgia de vencedores por amor à derrota,
a obstinada memória das viagens de tantos antepassados sem nome,
metafisicamente sós
numa desenfreada correria ultramarina
para alimentar as mercearias europeias.
Os guerreiros despiram as couraças.
Como os comerciantes, amaram generosamente
a terra indígena, e nus aprenderam tudo de novo.
Cristo era a deusa do ventre do mundo donde todo o comércio brota,
deusa do pragmatismo e da eficiência doméstica,
e o Virgem Negra o profeta das singulares demandas,
dos modestos suplicantes,
o pai dos poetas actuais.
Todos os descendentes ficaram cúmplices: os nomes que transportam,
hoje ainda, devaneios subtis que por negligência policial têm ficado,
são uma maneira própria de fazer as coisas prosaicas
- e quase tudo teve que ser no mar reinventado.
A invenção do mar foi a glória do ódio
ao confinamento
e a magnética repulsa libertária por um feudalismo impossível de traduzir.
Da vertigem do fundo
decorre a imaginação que cohabita esta conjurada mansidão anti-calvinista
como se fosse uma cultura perdulariamente negativa,
isto é,
onde o amor paralisa
e absorve metade do movimento primaveril da luz
no contorno temível da serra.
Refiro-me a todas as perguntas insensatas,
à magia que o sexo não explica,
à ânsia que a entrega não cura.
Na volúpia da montanha a língua indiferencia-se,
abarca todos os antónimos
e nivela-os numa contemplação estupefacta já próxima da loucura.
Não se pode falar de filosofia neste país de desportistas de fundo: a poesia
é uma eminência parda e amoral que perverte as ideias restantes,
adormecidas na barriga de especialistas do hoje.
Terra de demasiados portugueses. Furiosos empreendedores de sonhos,
(no seu parco amor próprio tanta ignorância por lamentar,
as raízes carcomidas pelos miasmas da vergonha)
sempre dispostos a partir e, contudo,
portugueses indeléveis
na mendicância de subjugados ou no grotesco despotismo
de quem, por curiosidade,
ocupa um poder doméstico
e o dilata sentenciosamente sem outro desígnio
que a eternidade esgotante da utopia.
Leviana Lisboa, lúbricos fluxos
venéreos de velha senhora nunca convenientemente amada.
Velha parideira de logros, contorcidas ruas de tanta heroína
e vómitos cénicos em plena pilha funerária.
Em ti saboreia-se
o apagamento da história
e, em vez da decadência cíclica de outra ideia,
uma saudade cantada,
negação de memórias pertinentes,
e, depois, alguém,
sempre alguém a partir de quem a lisibilidade das coisas se organiza
como se um local centuplicasse o sexo do mundo: o ondulado das colinas,
lânguido no corrupio das gentes, das subterrâneas águas,
e a derrocada nocturna, clandestina e coreográfica.
As abóbadas de cada metrópole coalescem - desfiam uma ideia de perfeição
que tecnocientificamente reconstitua o imobilismo clestial.
Acredito nessa irmandade cimentada em guerras de séculos: associação
de heterotéticos alquimistas, de senhores da matéria,
de náufragos da fé na opulência do seio triunfante.
Consomem todas as palavras no luxo de dissonantes solfejos:
muito presunto, poucas quimeras - julgam que tudo lhes é permitido.
Acredito na espionagem que mantém o nexo fiduciário do espectáculo:
adoradores de ouro coroam a virulência humana
em toda a extensão do mundo
contaminando o solo planetário até ao interior de cada cérebro.
O real é interactivo, repito.
Atemoriza-me, a sul, o fanatismo e o deserto.
Conformam-se no horizonte as hordas que incendiarão a cidade.
Reconheço os profanadores, os irreconciliáveis guerreiros do despojamento.
Outrora, entre os trovadores, havia príncipes e homens aéreos.
Foi para esses que mais se alterou o mundo: pássaros mortos,
solo inundado, florestas incendiadas.
Perante a eternidade
estão cansados uns, outros ludibriados.
Ergue-se uma estatuária laudatória,
apontam-se heróis insignificantes
- e é o retículo persuasivo de uma economia da loucura
a tutelar a nação
apesar das negaças dos poetas mais afoitos
e dos fotógrafos na sua ânsia de verificação,
de legitimação ingénua
dos desvios,
dos desviados,
dos desviantes
à falsa brandura das tradições.
Sou hoje uma terra cansada, céptica e incapaz
senão para moda,
aparatoso e digestivo cimento do Estado.
Eu própria sou a reinvenção utilitária da história,
a direcção das balas perdidas,
o incógnito que, através do céu, mata sem discriminar
o amanhecer visionário e os seus relâmpagos sonâmbulos,
o ruidoso progresso e as reaccionárias canções
a branco e negro embandeiradas.
A atmosfera clara e a superfície das praias fertilizam a imaginação:
tornei-me a pátria sub-reptícia dos líderes apátridas da pirataria legalista.
Nunca satisfeita, a população porfia,
sua e morre numa espuma de truísmos
- e chama-me mãe, confiadamente.
Do interior do solo as engrenagens que movem as plataformas
transgridem as linhas de força que me unem ao sol
e às estrelas da adivinhação da vida:
agora ou séculos à frente,
planeia-se um apocalipse manso e mudo,
a rigidificação do mundo
donde eu estarei distante.
Nuno Félix da Costa (n. 1950), in Panfletarium (1996). Psiquiatra
de profissão, divide desde cedo o seu ímpeto criativo entre a fotografia e a
poesia. Publica poemas que revelam uma atenção aos problemas sociais, filosóficos,
políticos, culturais do seu tempo, superando as delimitações da situação através
de uma análise crítica dos pilares civilizacionais e da cultura ocidental. Em
certo sentido, podemos dizer que é um poeta whitmaniano empenhado em subverter
qualquer noção épica da poesia. Fá-lo através de uma forte tendência aforística e um
claro descomprometimento estético que o levam a praticar uma poesia ora advinda
de observações práticas sobre o real, ora adoptando uma postura mais reflexiva e
se desenvolvendo no sentido de uma discursividade refractária ao lirismo cuja
maior preocupação seja a musicalidade das palavras, o ritmo dos versos, a sugestibilidade
imagética.
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