sábado, 20 de fevereiro de 2016

ESCULTURA EM PEDRA COM PAPAGAIO LÁ DENTRO QUE VOA E ATERRA DE BICO*


Tinha começado a construir uma casa pelo telhado, portas no lugar das janelas, um hall de entrada por onde tudo saía, um hall de saída, uma saída de entrada decorada com o trabalho braçal dos inquilinos, pás embutidas em blocos de cimento, pás verticais, pesadas como homens gregos a dar as boas vindas a quem saísse momentaneamente de si próprio


era uma casa com portas por cima das lareiras, na sala de estar os convidados aqueciam-se a queimar pedra nas bocas de incêndio com que trabalhavam os ornamentos, os inquilinos ornamentavam as divisões da casa com convidados de espanto, voltavam as costas a paredes negras e respigavam nos quintais matéria morta rejuvenescida, matéria viva 


quem circulasse pelos corredores estenderia o olhar às paredes, e nas paredes vislumbraria os instrumentos de trabalho com que se constroem as casas, esta era uma casa casa, um santuário de coisas ressuscitadas, porque as casas deviam ser como os corpos humanos que transportam seus próprios órgãos, as casas são corpos humanos e transportam seus próprios inquilinos 


as casas não deviam ser habitadas por elementos estranhos, como sombras de pessoas pálidas e homens gregos, só compreendo uma casa cujas paredes possam ser decoradas com o chão, o chão deve poder elevar-se acima da sua condição funcional, não faz sentido condená-lo a ser eternamente espezinhado, os homens deviam poder andar nas paredes e pendurar quadros no chão


se a arte é o que embeleza a casa, se a arte é o que limpa a casa, então por que não permitir que o que limpa a casa seja arte? a arte não é o que embeleza, a arte não é o próprio, é o porquê? e por que não pendurar num cabide a alcatifa da casa soalhada? a função dos objectos pode ser estabelecida a partir da relação que estabelecem com o espaço, diz o crítico. mas isto é uma esfregona, o génio da casa, a esfregona é o génio da casa, percebes crítico?


quando um homem sonha... os seus circuitos internos saltam para fora do corpo, quando um quarto sonha há um emaranhado de artérias que se manifestam, do efeito visual provocado pelo entrelaçamento das artérias podemos construir uma metáfora acerca do sonho, um quarto a sonhar é em si mesmo uma metáfora, é um labirinto que consideramos caótico por nos ser leve a escravatura da geometria


falemos de casas, dizia o poeta, imaginemos uma casa iluminada por fragmentos de alcatrão, imaginemos que as auto-estradas entravam dentro das casas, as atravessavam como fachos de luz num dia de sol, imaginemos que o alcatrão era a luz que ilumina as casas, o alcatrão sobre o qual transitam carrinhas abandonadas no pátio das casas 


seria irónico ver uma casa atravessada por uma estrada, os homens constroem casas para se afastarem das estradas, os homens caminham como as casas, é da sua natureza impedirem o acesso ao céu com escadas atravessadas, os homens têm várias escadas que se atravessam umas nas outras e impedem os homens de subir, eu vejo nisto uma casa a subir sobre si mesma, uma casa a trepar as suas próprias paredes, como um homem que tenta chegar ao mais alto de si mesmo


a geometria é a mais bela dimensão de tudo quanto pode ser dividido, é o fumo que sobe pelas chaminés, a geometria é na cabeça dos homens gregos o fumo que se evacua  pelas chaminés, por isso desenhamos círculos dentro de quadrados, quadrados dentro de triângulos, e dizemos que esses desenhos têm um sentido oculto, um significado simbólico


o significado é: a pá não ser uma pá, ser uma escultura, o chão não ser chão, ser um quadro, o lixo não ser lixo, ser arte, a estante vazia não ser uma estante vazia, ser uma infinidade de palavras silenciosas a provocarem-nos pensamentos e ilusões, desconstruções do espaço, da relação que o espaço estabelece com quem o habita, a parede não ser uma parede, ser chão, em suma a casa não ser uma casa, ser a rua



por isso apontamos o carro de mão carregado de cilindros e dizemos: eis o homem grego, o equilíbrio das formas, um belo homem grego enferrujado, gracioso e monumental como um deus doméstico, um deus capaz de trazer a rua para dentro das casas, um deus robustamente estético, capaz de nos expulsar de nós próprios e de nos aceitar enquanto inquilinos de mais uma bela subversão. 



* Exposição de Vasco Costa e Paulo Barros na Casa Bernardo. 

1 comentário:

Anónimo disse...


:-)

quim