domingo, 21 de fevereiro de 2016

O MEDO (2) [fragmento]


   22 de fevereiro
   quando era criança ouvi contar que deus se escondia por todo o lado; nas águas turvas de sabão, nos poços, na folhagem espessa do loureiro ao fundo do jardim, no florir das acácias ou na corola violácea de uma rosa. no entanto, parecia-me que o lugar mais provável era o cimo das árvores — não sei porquê — talvez por achar que deus tem de manter uma certa distância da terra, do estrume. nunca consegui uma explicação para a escolha que fizera: deus escondia-se no cimo das árvores, porque achava um pouco exagerado que ele se encontrasse em tudo e por todo o lado, não era possível. se assim fosse, onde poderíamos nós esconder-nos dele?
   subia às árvores e ficava horas a fio acocorado na folhagem, em silêncio esperava que deus se me revelasse.
   um dia surpreendi um melro no ninho e, repentinamente, veio-me à ideia que deus se escondia dentro de um ovo. o melro, coitado, ao ver-me voara assustado. agarrei no ovo e trouxe-o para casa.
   conservei-o guardado muito tempo depois de ser criança, dentro duma caixinha com algodão. às vezes vigiava-o durante a noite, até que o esqueci, deixou mesmo de me aparecer em sonhos; o ovo que, julgava eu, continha deus.
   anos mais tarde, numa mudança de casa, reencontro a caixa no fundo duma gaveta. o ovo estava aparentemente intacto, mas mal lhe toquei desfez-se, cheirava mal. deus, com o tempo, também tinha apodrecido no meu coração.


Al Berto, in O Medo, Contexto/Círculo de Leitores, Outubro de 1991, pp. 364-365.

1 comentário:

Graça Pires disse...

Gostava de ter sido eu a escrever este texto...
Um beijo.